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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Governo sugere à ONU que tensão no Pará envolve disputa entre indígenas

Destruição causada pelo garimpo ilegal nas terras indígena Munduruku, no sudoeste do Pará,  - Chico Batata/Greenpeace Brasil
Destruição causada pelo garimpo ilegal nas terras indígena Munduruku, no sudoeste do Pará, Imagem: Chico Batata/Greenpeace Brasil

Colunista do UOL

01/05/2022 04h00

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O governo de Jair Bolsonaro sugeriu para a ONU (Organização das Nações Unidas) que a tensão envolvendo ações de garimpeiros e madeireiros no Pará é resultado em parte de um racha entre os próprios indígenas. A insinuação consta de uma carta que foi enviada pelo Itamaraty para a entidade depois que relatores das Nações Unidas cobraram respostas por parte do governo sobre ameaças e intimidações sofridas por grupos indígenas.

Obtida pela coluna, o documento enviado pelo governo é alvo de críticas por parte de grupos indígenas nacionais, já que omite as funções da Funai (Fundação Nacional do Índio), Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e do próprio Executivo. A resposta está sendo dada dias antes do início de uma viagem para a Europa de uma missão de representantes da etnia Munduruku, que irão denunciar violações contra os povos indígenas na região do Pará.

Conforme o UOL revelou com exclusividade na semana passada, as ameaças sofridas pela liderança Alessandra Mundukuru durante a Conferência do Clima da ONU, em Glasgow (COP26), em 2021, levaram os relatores das Nações Unidas a cobrar em fevereiro explicações por parte do governo brasileiro.

Na resposta, enviada apenas em 19 de abril, o governo omite a situação em Glasgow e apenas lista uma série de medidas tomadas para investigar atos no Brasil e garantir a proteção da líder indígena.

O governo admite que Alessandra Munduruku é amplamente conhecida por ser a primeira mulher a presidente a Associação Indígenas Pariri, no rio Tapajós. "Nesse contexto, a líder indígenas tem sido vítima de ameaças e atos de violência", diz a carta.

Segundo o governo, porém, a região presencia uma tensão entre diferentes grupos indígenas. "A região na qual Alessandra Munduruku opera tem experimentado tensões em anos recentes", dizem as autoridades brasileiras. "De um lado, a maioria dos povos indígenas da étnica Munduruku e quase todos as associações são opostas à mineração e extração de madeira dentro de territórios indígenas. De outro lado, um grupo - formado por indígenas e não indígenas - tem atuado para promover tais atividades", diz o texto.

Haroldo Santos, coordenador do Conselho Indigenista Missionário na região, criticou a versão do governo e destacou a "impossibilidade de se falar em "dois" grupos em disputa, como o governo está dizendo".

Segundo ele, de um lado estão a imensa totalidade dos 14 mil membros da etnia Munduruku e suas organizações, com suas assembleias e medidas tomadas de maneira coordenada. "E do outro estão algumas pessoas que, inclusive já não moram na aldeia há muitos anos, e constituíram família fora", disse.

Ao longo de três anos de governo, Jair Bolsonaro tentou construir uma narrativa de que nem todos os indígenas defendem as reservas como estão e que ele conta com o apoio de grupos que aceitam a exploração econômica da região.

Bolsonaro chegou a levar à ONU uma indígena, num esforço de retirar a credibilidade de líderes críticos à sua gestão, como o cacique Raoní.

Campanha na Europa e ouro na Suíça

Mas a pressão contra o governo continuará. Nesta semana, uma delegação composta por lideranças indígenas e comunitárias da Volta Grande do Xingu e do Tapajós (Pará) estarão na Bélgica e Suíça para encontrar autoridades da União Europeia e denunciar invasões de seus territórios por garimpeiros e mineradoras.

Segundo eles, há uma "explosão" do garimpo e da violência na região do Tapajós. Participam da delegação Maria Leusa Kaba Munduruku, presidente da Associação de Mulheres Indígenas Munduruku (Wakobor?n), Luiz Eloy Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Ana Laide Soares Barbosa, educadora popular do Movimento Xingu Vivo para Sempre, Sara Rodrigues de Lima e Idglan da Silva Cunha, representantes do Núcleos Guardiões da Volta Grande do Xingu.

"A região do Tapajós é a que mais concentra garimpo ilegal em toda a Amazônia. Grande parte desses garimpos está dentro das terras Munduruku, e conforme indicam pesquisas recentes, a população indígena está altamente contaminada por mercúrio", alertam.

"O apoio dado ao garimpo por autoridades federais, estaduais e municipais alimenta conflitos nos territórios, que se traduzem em ataques às vidas dos defensores dos direitos indígenas", dizem.

Segundo eles, o caso da violência nas terras Munduruku do Alto Rio Tapajós, Pará, é "emblemático".

"A partir do final de 2020, as invasões e tensões envolvendo garimpeiros na TI Munduruku se intensificaram de forma inédita, com total omissão da Estado brasileiro. Em março, a Associação das Mulheres Munduruku Wakobor?n, em Jacareacanga (PA), foi invadida e queimada por um grupo de garimpeiros. Em maio, a aldeia de Maria Leusa foi invadida por garimpeiros, que colocaram fogo nas casas de Leusa e sua mãe, a cacica Dona Isaura. Toda a aldeia foi destruída pela ação criminosa dos garimpeiros. Em junho, um ônibus que levaria lideranças Munduruku para manifestação em Brasília foi atacado", relata o grupo, que ainda destaca a violência contra Alessandra Korap.

"As lideranças Munduruku continuam sendo ameaçadas e intimidadas, sem receberem apoio de segurança do Governo Federal", afirmam.

O grupo solicitará aos europeus medidas urgentes e para que sejam aprofundadas as investigações sobre o papel de governos, empresas e investidores europeus em projetos de grande infraestrutura e extrativismo na Amazônia, especialmente nas regiões da bacia do rio Tapajós e da Volta Grande do Xingu.

"Nossa vinda à Europa tem dois objetivos: denunciar às autoridades os investimentos que governos e empresas estrangeiras fazem na nossa Amazônia através de projetos de mineração, hidrelétricas, agronegócio, hidrovias, portos, ferrovias e madeira. Esses investimentos trazem consigo a morte do povo e do meio ambiente, causam doenças, violam os direitos humanos e da mãe natureza. Esses investimentos estão levando o planeta ao caos. O nosso segundo objetivo é que respeitem os nossos modos de vida e sejam solidários para que, juntos, possamos reconstruir outros meios de vida sem destruição e recuperar as perdas dos nossos rios, das nossas florestas e da nossa dignidade humana", afirma Ana Laide Soares Barbosa, educadora popular do Movimento Xingu Vivo para Sempre.

Eles irão se reunir com o Representante Especial da União Europeia para Direitos Humanos, Eamon Gilmore, para discutir denúncias submetida ao seu gabinete no ano passado sobre as ameaças do projeto minerário Belo Sun e pela UHE Belo Monte às comunidades da Volta Grande do Xingu.

Na Suíça, as lideranças estarão com a Konwave Gold Equity Fonds, investidora de Belo Sun. O grupo ainda se encontrará com refinarias que hoje recebem ouro ilegal extraído dos garimpos em territórios indígenas.

Maria Leusa Kaba Munduruku explicou que levou cinco dias para sair de sua região e desembarcar na Europa.

"Nós estamos aqui para compartilhar as nossas experiências dolorosas, pois estamos sendo agredidos e atacados por garimpeiros, por invasores, pelas empresas e mineradoras, e pelo próprio governo brasileiro e seus aliados. Somos mães, somos terras, somos território, somos rio e queremos paz", disse.

"Viemos mostrar essa voz, esse choro dos nossos filhos para a Europa, onde estão muitas das empresas estrangeiras que apoiam a morte dos nossos filhos, do nosso povo, dentro da nossa casa, do nosso território onde vivemos. A gente está aqui para pedir justiça, para que não invadam mais o nosso território", explica.

Segundo eles, a hidrelétrica de Belo Monte desvia até 80% das águas da Volta Grande do Xingu para as turbinas da usina, causando uma despopulação de peixes no rio e secas cada vez mais severas nos igarapés e cursos d'água da região, "quebrando as economias pesqueira e agrícola das comunidades, aprofundando a fome, a miséria e a violência endêmicas na região".

"Já o projeto de mineração da empresa canadense Belo Sun, que pretende se instalar sobre uma vila com mais de 200 famílias e parte do Projeto de Assentamento Ressaca, também na Volta Grande, está atualmente com o licenciamento suspenso em função dos impactos sobre populações indígenas Juruna e Arara", explicam.