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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Brasil propõe acordo global para estabilizar mercado de alimentos

O ministro Carlos França foi elogiado por Bagley - EPA
O ministro Carlos França foi elogiado por Bagley Imagem: EPA

Colunista do UOL

12/06/2022 08h36

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O governo brasileiro defendeu neste domingo que a comunidade internacional encontre uma forma de fechar um acordo para garantir a estabilidade dos mercados de alimentos. A proposta foi feita pelo chanceler Carlos França, num vídeo gravado para a abertura da conferência mundial da OMC (Organização Mundial do Comércio), em Genebra.

De forma inédita, o Brasil não enviou seu chanceler para o encontro, com dezenas de ministros de todo o mundo e o primeiro em cinco anos na OMC. Ele estava com o presidente Jair Bolsonaro nos EUA. A delegação brasileira está sendo liderada pelo secretário-geral do Itamaraty, Fernando Simas Magalhães, que irá encabeçar as negociações pelo Brasil.

Numa gravação, porém, o chanceler alertou que a Organização Mundial do Comércio vem enfrentando "sérios desafios há algum tempo: negociações em grelha, um Órgão de Solução de Controvérsias não-funcional e a necessidade de modernizar reformas".

"Hoje, estes desafios vêm com a tensão adicional de perturbações geopolíticas, ameaças à globalização, impactos persistentes da covid-19 e riscos crescentes, particularmente o combate à pobreza, à fome e à mudança climática", afirmou.

Segundo ele, o Brasil tem um "compromisso inabalável" com a OMC e com o sistema comercial multilateral. A mensagem é dada depois de anos turbulentos de um Itamaraty que, sob Ernesto Araújo, questionava o multilateralismo.

Entre os objetivos do Brasil está, segundo França, a agricultura. "Precisamos de um pacote de segurança alimentar com resultados a curto e longo prazo; ajudando a estabilizar os mercados de alimentos agora mesmo, e estabelecendo mandatos para a reforma agrícola na próxima ministerial", disse.

Ele também defendeu que a OMC faça sua parte para lidar com pandemias e saúde pública, incluindo doenças negligenciadas nos países em desenvolvimento. "Um resultado multilateral aqui é tanto necessário quanto exequível", defendeu.

Em meio à pior crise de fome em uma geração e com a vacina ainda sem chegar a milhões de pessoas pelo mundo, governos iniciaram neste domingo a cúpula da OMC na busca por acordos que permitam lidar com o fluxo de alimentos e imunizantes. Mas, rachados, diplomatas terão intensas reuniões nos próximos dias para que um entendimento possa ser anunciado. Hoje, porém, um impasse marca o processo negociador.

A conferência ministerial da OMC, em Genebra, ocorre num momento em que a ONU alerta para uma explosão do risco da fome e da pobreza. Não há, porém, um acordo sobre como lidar com essa realidade e observadores alertam como governos passaram a manipular a crise para atingir objetivos comerciais, camuflados de "preocupações humanitárias".

Fora da OMC, o governo da Ucrânia propôs um entendimento para permitir que o abastecimento de alimentos não seja afetado pela guerra. Enquanto isso, governos africanos alertam que o conflito na Europa ameaça jogar milhões de pessoas para a fome extrema. Já as potências ocidentais acusam o governo russo de estar tentando criar um cenário de fome, na esperança de pressionar a comunidade internacional a atender os interesses do Kremlin.

Timur Suleimenov, presidente da conferência da OMC, não deixou dúvidas sobre a dificuldade que existe para um acordo. "Os desafios são tremendos. Mundo sofreu golpes e não superamos eles", afirmou. "As pessoas questionam o sistema multilateral e agora é o momento de provar que podemos agir", disse. "Um fracasso vai gerar mais choques para o sistema. O mundo não precisa de mais incerteza", afirmou.

Ngozi Okonjo-Iwea, diretora-geral da OMC, espera que, fora da entidade, um acordo seja fechado para permitir que um corredor escoe até 25 milhões de toneladas de grãos que estão parados nos portos ucranianos. Para ela, isso "aliviaria" a crise. Mas alerta que o debate é "político".

Na OMC, ela aposta em "um ou dois acordos". Sua esperança é de que uma declaração seja aprovada com um compromisso de que governos não adotarão restrições a exportações de alimentos, o que ampliaria a crise e a inflação. Outro ponto do acordo seria um compromisso de que países não irão limitar a exportação de alimentos que tenham como destino projetos humanitários no Programa Mundial de Alimentação da ONU.

"Mundo vive crise sem precedente"

Mas Ngozideixa claro que não será um processo fácil. Ela admitiu que nunca havia presenciado tantas crises simultâneas no mundo como agora, incluindo pandemia, fome, guerra, tensão geopolítica, energia e mudanças climáticas. "Ministros terão a oportunidade de lidar com isso tudo", afirmou. "Nunca vi em minha vida tantos conflitos simultâneos como agora", disse.

"Ninguém vai conseguir solucionar essas crises sozinho Precisamos que o mundo trabalhe juntos", disse. "Não vai ser fácil", admitiu a diretora, apontando que a crise ucraniana pode atrapalhar a negociação. O encontro é o primeiro em cinco anos. "O mundo mudou desde então e ficou mais complexo", alertou Ngozi.

Brasil propõe acordo sobre regras agrícolas

Em Genebra, não por acaso, um dos principais pontos de tensão se refere ao setor agrícola. O governo brasileiro propôs um acordo permanente para permitir que países mais pobres e importadores de alimentos possam manter e criar estoques de grãos e outros produtos, mas sem que isso signifique medidas protecionistas ou distorções do comércio.

O temor do Brasil e de outros países exportadores de commodities é de que, sem regras claras, manobras diplomáticas por parte de Índia e outros governos acabem criando uma concorrência desleal para os produtos nacionais no mercado internacional.

O debate sobre os estoques de alimentos já vinha deixando governos em lados opostos da mesa. Mas, com a guerra na Ucrânia e o desabastecimento de vários setores, o temor das entidades internacionais é de que a crise alimentar possa se espalhar pelo mundo e afetar, acima de tudo, a população mais pobre.

Um dos principais problemas, porém, se refere ao que é visto por países exportadores de alimentos como uma tentativa da Índia de se aproveitar da crise para conseguir uma espécie de cheque em branco para poder subsidiar sua agricultura, usando os estoques como maneira de repassar os recursos.

Hoje, os indianos subsidiam sua produção em 70 bilhões de dólares, um dos maiores volumes do mundo. Mas insistem que a OMC precisa ampliar a capacidade de países em desenvolvimento para formar seus próprios estoques.

Para o Brasil, porém, um entendimento precisa ser estabelecido. De um lado, os países importadores de alimentos precisam ter garantias de que tais estoques podem ser feitos e a segurança alimentar precisa estar garantida. Mas desde que condições sejam preenchidas para impedir que haja uma manobra por parte dos governos.

Um dos critérios propostos pelo Brasil é o de que tais programas de estoques sejam usados exclusivamente para garantir a segurança alimentar de um país. Os estoques não podem distorcer o mercado e nem afetar segurança alimentar de outro país.

Pela proposta do Brasil, os estoques não podem ser revertidos em exportação e tampouco usados como ração animal.

Para a delegação brasileira, políticas de apoio de preços é a que mais distorce os mercados. Para o Itamaraty, quando compras governamentais são realizadas para se formar estoques de alimentos, tais políticas não podem ocorrer sem que haja uma verificação.

Os indianos ainda são acusados de estarem tentando sequestrar a agenda de negociações. A posição de Nova Deli é de que, sem um acordo para liberar estoques de alimentos, o governo indiano não aceitaria qualquer acordo para permitir que alimentos enviados para programas humanitários seja fechado nesta semana.

Acordo sobre vacinas é esvaziado

Um outro ponto de desentendimento se refere à proposta negociada por 20 meses e que pedia o fim das patentes para vacinas, tratamentos e outros produtos para lidar com a pandemia da covid-19.

O projeto apresentado por Índia e África do Sul previa a suspensão do monopólio para esses produtos, permitindo que produtos genéricos pudessem ser fabricados. O resultado seria um maior acesso aos tratamentos e vacinas. Mas depois de 15 milhões de mortos pela pandemia no mundo, não existe ainda um acordo sobre como isso deve ser realizado.

Países europeus e outras economias ricas se recusam a abrir mão de patentes, mesmo diante da pior crise sanitária em um século.

Um rascunho de texto foi apresentado nos últimos dias, frustrando as expectativas de ativistas e de grupos da sociedade civil que pediam uma ação ambiciosa. O novo rascunho de acordo apenas trata de vacinas - excluindo tratamentos e outros produtos - e impõe critérios que dificultarão seu uso.

A posição inicial do Brasil era de apoio aos países ricos. Mas, nos últimos meses, o governo modificou sua postura e até mesmo foi o autor do trecho do documento que sugere flexibilidades na aplicação de propriedade intelectual. O Itamaraty ainda foi além e apresentou uma proposta para que doenças negligenciadas sejam também lidadas no arcabouço que está sendo construído na OMC,

Para representantes da sociedade civil, a postura inicial do governo foi "uma vergonha". "O governo abandou nossa história de liderança multilateral na defesa da saúde", disse Alan Rossi Silva, advogado da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA). "Mas ainda há tempo para mudar", afirmou.

Ele e outras entidades como Médicos Sem Fronteira insistem que o texto sobre a mesa não representa uma suspensão efetiva de patentes e que governos precisam pressionar por mudanças.

Ngozi, ainda assim, aposta num entendimento. "Depois de um longo impasse, agora temos um texto", disse. Segundo ela, o rascunho seria equilibrado entre aqueles que defendem maior acesso às vacinas e países que querem manter patentes.