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Arma na cabeça e assassinatos levaram ex-Funai a pedir asilo na Europa
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Resumo da notícia
- Indigenista viveu dois anos com status provisório de asilo na Noruega e hoje está em Roma
- Contemporâneo de Bruno Pereira, Ricardo Rao diz que agência foi sequestrado por milícia
Em novembro de 2019, depois de sofrer repetidas ameaças de morte, ver companheiros assassinados e ter até uma arma apontada para sua cabeça, Ricardo Rao decidiu que não poderia mais ficar no Brasil. Naquele momento, ele atuava como agente da Funai (Fundação Nacional do Índio) no Maranhão. Mas, para fazer seu trabalho, tinha de enfrentar não apenas os criminosos ambientais. Ele era alvo também de milícia e processos administrativos que, segundo o agente, se transformaram em instrumentos para silenciar e constranger os funcionários considerados indesejados.
Rao entrou na Funai em 2010, no mesmo período de Bruno Pereira, assassinado na semana passada no Vale do Javari (AM). Hoje, ele vive em Roma, depois de ter passado dois anos na Noruega com um status temporário de exilado. Procurada pela reportagem, a Funai não respondeu aos pedidos de esclarecimento sobre o caso. Assim que houver manifestação do órgão, a coluna será atualizada.
"A milícia controla hoje a Funai", disse o indigenista em entrevista ao UOL. "Sempre recebemos ameaças. Bruno recebeu, eu recebi e até minha mãe recebeu. Agora, a diferença é que as ameaças se cumprem. Quem faz a ameaça acha que pode matar. Afinal, o Bolsonaro falou, não é", afirmou.
Rao, numa longa conversa com a reportagem, relatou cada um dos momentos da agência nos últimos quatro anos. Apesar de saber da ofensiva do governo de Jair Bolsonaro contra as políticas ambientais e indigenistas, ele conta que os funcionários tomaram a decisão de que iriam simplesmente seguir trabalhando. "Como se nada tivesse mudado. Afinal, somos funcionários do estado", explicou.
Mas seu relato é de um órgão que foi desmontado nas mãos de Bolsonaro e de uma região que passou a ser controlada por ameaças, milícias e mortes. Antes mesmo de o governo começar, a simples perspectiva de uma vitória bolsonarista e seu discurso de ódio já havia sido traduzida no maior número de indígenas mortos.
Poucos, porém, imaginavam que o cenário seria tão rapidamente deteriorado. No início de 2019, Rao realizou uma operação para a apreensão de um caminhão ligado a um suspeito envolvido em inquéritos de crimes ambientais no Maranhão. A ação ocorria numa terra dos índios Gaviões, no município de Amarante do Maranhão.
"No para-brisa do caminhão, a primeira coisa que vimos foi um adesivo: Bolsonaro Presidente", contou.
Dois meses depois, com sua base em Imperatriz, também no Maranhão, o indigenista foi uma vez mais alertado sobre uma nova invasão em terras indígenas. Naquela ocasião, uma moto foi encontrada pela equipe e confiscada.
Mas, para sua surpresa, a polícia apareceu na aldeia dizendo que estava procurando a moto. "As indígenas vieram correndo para me avisar da presença da polícia", relembra. "Eles foram com viatura para aprender a moto de um criminoso ambiental", contou, indignado.
O indigenista relata como houve inclusive a tentativa de fraudar um boletim de ocorrência, para alegar que a moto tinha sido furtada.
A opção de Rao foi por destruir a moto, algo que a lei permitia que fosse feito. De fato, ele explica que esse é um mecanismo autorizado para evitar um cenário comum na região: o veículo ou bem ser confiscado e, dias depois, reaparecer com o mesmo grupo criminoso.
Apesar da destruição da moto, a pressão continuou. Poucos dias depois, um representante da Polícia Militar aparece em seu escritório, exigindo a devolução da moto. "Isso foi o que me chocou. Foi uma tentativa de extorsão", disse.
Segundo ele, o oficial lançou até uma ameaça velada. "Tem 17 madeireiros na região. Como o senhor vai ficar andando?", questionou.
Armas apreendidas e um alerta ao filho do indigenista
Em meados de 2019, na aldeia São José, Rao recebeu mais um alerta de que invasores estariam atuando dentro de uma área homologada. Por uma decisão judicial, as famílias com casas ou terrenos na região teriam de ser indenizadas. Mas não poderiam mais fazer qualquer tipo de ação concreta na zona, como abrir pastagem.
Uma ordem judicial, portanto, pedia que os agentes fossem até a região e colocassem fim nas atividades ilegais. "Fomos a uma operação para fiscalizar e tínhamos uma ordem judicial, o que apenas tornou as coisas mais assustadoras", afirmou.
Ao chegar no local, Rao se deparou com "muitas armas" numa das fazendas dentro das terras indígenas. E foi o confisco daquele arsenal que abriu uma nova crise.
Segundo o indigenista, uma viatura com "cinco milicianos armados, incluindo PM" apareceu na região e entrou em uma aldeia "mostrando armas para todos".
"Mas, para minha surpresa, na viatura estava o dono das armas", disse o ex-agente. "Fui ameaçado de todo o jeito e dizendo que queriam as armas de volta", relatou.
As ameaças, neste momento, foram direcionadas também contra o filho do indigenista, que estava também no local. "Ali me deu medo", admitiu. "Me disseram: o senhor gostaria que alguém entrasse na tua casa para levar seu filho?".
As ameaças, segundo ele, foram seguidas por um forte assédio judicial. "Depois dessa ameaça, começou um monte de denúncias falsas, nos acusando de roubos", disse Rao, indicando manobras de constrangimento. "Percebemos que o cerco estava se fechando e não tínhamos o apoio de nenhum militar", disse.
Depoimentos prontos para indígenas, inquéritos forjados e visita da Abin
A pressão, segundo ele, também envolvia processos contra indígenas que tinham feito parte das operações da Funai. Rao conta que ele e líderes locais foram intimados pelas autoridades do município de Montes Altos. "Quando chegamos lá, descobrimos que os depoimentos já estavam prontos e que apenas pediam que os indígenas assinassem. Eram inquéritos forjados", alegou.
Rao ainda conta que, dias depois dos inquéritos forjados, a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) apareceu em sua base da Funai, enquanto alguns dos suspeitos também rondavam o local. "Estavam nos mandando mensagens", disse.
Procurada, a agência negou qualquer ação contra "Rao. A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) mantém contatos institucionais frequentes com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Os órgãos possuem longa e sólida parceria no acompanhamento da temática indígena e, neste cenário, a realização de visitas institucionais são frequentes", explicou a Abin.
"Oficiais de Inteligência da ABIN visitaram a Coordenação Regional da Funai no Maranhão, localizada em Imperatriz/MA, duas vezes em 2019. Em ambas as ocasiões, as visitas foram institucionais e se resumiram a encontros com o coordenador regional substituto da Fundação. As reuniões abordaram questões ligadas a temática indígena e o oferecimento de bens para doação", diz a entidade.
"Em nenhum momento foi tratado de eventual processo disciplinar contra quaisquer dos servidores da Fundação Nacional do Índio, assunto sobre o qual a Agência não tem qualquer competência. A ABIN jamais teve processo, investigação ou monitoramento do ex-servidor Ricardo Rao", completa.
Rao, porém, diz que um dia depois da presença da Abin, uma equipe da corregedoria foi lhe visitar e anunciou que estava sendo investigado por um processo administrativo disciplinar. "A denúncia era de crime de ameaça contra outro funcionário. Eu não reconheci o processo e não assinei. Mas naquele momento eu vi que não tinha mais condição de trabalho", explicou.
Segundo ele, nas semanas que se seguiram, funcionários pediram licenças ou anteciparam aposentadorias. "Houve um clima de debandada", disse.
Já pensando em sair, Rao foi até uma das aldeias para conversar com as lideranças locais. Ali, encontrou com Paulo Paulino Guajajara, um indígena que atuava pela proteção da floresta.
"Ele me contou que havia uma suspeita de uma grande plantação de maconha na floresta e a chegada de um PM do Rio", disse. "Mas não houve tempo para saber se era verdade", lamentou.
Duas semanas depois, um homem "me grudou uma pistola na cabeça". "E me disse: quem fica lambendo cu de índio aqui não dura. Vaza", relatou. Rao suspeita que aquele era o PM do Rio.
"Pouco depois, mataram [o líder indígena] Paulo Paulino. E ai foi quando eu vi que eu estava condenado. Eu ia ser o próximo", disse. "Esses fatos me deram a convicção de que, se eu não saísse do país, eu seria morto", insistiu.
Pedido de asilo na Noruega
Sem confianças nas autoridades policiais locais, ele decidiu viajar até Brasília e apresentar um informe com todas essas informações ao Conselho de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
Dois dias depois, em 28 de novembro de 2019, ele embarcou para Oslo, onde pediu asilo por conta das ameaças que estava sofrendo. Seu pleito ainda foi sustentado por cartas enviadas por deputados para o rei da Noruega, ao primeiro-ministro e ao parlamento.
Rao recebeu um status provisório de asilo e foi hospedado na casa de pastores luteranos, enquanto seu processo estava sendo avaliado.
Mas, por ter também nacionalidade italiana, o pedido de asilo permanente poderia ser um negado e, dois anos depois de ter desembarcado na Noruega, Rao optou por se instalar em Roma, onde continua seu exílio.
"Eu quero voltar um dia. Mas não sei como. Eu tentei fazer barulho antes. Bruno ficou e morreu", completou o indigenista, indignado.
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