Topo

Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Brasil vira nova fronteira da disputa por hegemonia entre China e EUA

15 nov. 2021 - Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em cúpula virtual com o presidente da China, Xi Jinping, na Casa Branca, em Washington, EUA - Mandel Ngan/AFP
15 nov. 2021 - Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em cúpula virtual com o presidente da China, Xi Jinping, na Casa Branca, em Washington, EUA Imagem: Mandel Ngan/AFP

De Pequim

08/04/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Quando o presidente Xi Jinping se despediu de Vladimir Putin, no mês passado em Moscou, apertou sua mão e disse:

"Neste momento, existem mudanças como nunca vimos em cem anos. E estamos conduzindo essas mudanças juntos".

A frase surpreendeu uma parcela da opinião pública nas capitais ocidentais. Mas, ao percorrer quatro cidades chinesas na última semana, a reportagem do UOL se deparou com o mesmo lema, repetido em diversos encontros comerciais, sobre geopolítica ou diplomacia: "somos testemunhas da construção de uma nova ordem mundial". Para observadores, trata-se de um eufemismo e poderia ser traduzida como o desejo de Xi de mostrar que a era da hegemonia americana está chegando ao fim e que a decadência política dos EUA é uma realidade.

Para Pequim, não existem dúvidas de que há um processo de redefinição da ordem mundial. Ele quer fazer parte dos protagonistas que estão redesenhando as áreas de influência e sua capacidade de hegemonia.

E, neste processo, nenhuma região do mundo está excluída dessa disputa.

Para observadores e diplomatas consultados pela reportagem, o Brasil, considerado como estratégico e fornecedor de matéria-prima, vive de forma explícita e implícita essa nova realidade internacional. "Queira ou não, estamos todos vivendo essa lógica. Cabe ao Brasil usar da melhor forma a existência dessa disputa para sair com benefícios", disse um experiente embaixador brasileiro.

Em Pequim, autoridades não escondem: querem colocar o Brasil num "novo patamar" em sua estratégia de política externa e influência, além de contribuir para uma mudança do eixo da economia nacional. E, tudo isso, em meio a uma disputa por hegemonia com os EUA que pode definir o século 21.

Assim, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva viajar para a China, no dia 11 de abril, a recepção que terá dificilmente conseguirá ser superada ao longo de seu mandato por nenhum outro aliado.

O lado brasileiro correspondeu ao convite feito pela China, organizando uma delegação com um número inédito de empresários e mais de 30 políticos, entre ministros, governadores e deputados. A pneumonia de Lula impactou os planos. Mas não a ambição política.

Na pauta da viagem estão acordos que serão anunciados em setores de alta tecnologia, satélites, semicondutores, 6G, inteligência artificial, expansão da internet, clima, turismo, investimentos em energia limpa e outros temas estratégicos.

O Brasil não deixou qualquer dúvida aos chineses ao negociar os termos da viagem: o superávit que a economia da China gera ao país é fundamental. Mas o governo brasileiro quer um maior equilíbrio e fugir de uma condição de mero fornecedor de commodities. Brasília tampouco quer apenas o desembarque da China comprando os ativos nacionais.

Os novos acordos, portanto, cumprem essa função estratégica e ainda permitem que a China atue em áreas nas quais mantém uma disputa por hegemonia com os americanos.

Pequim, hoje, é a maior potência comercial do mundo. Suas exportações ocupam 14% do mercado internacional e somaram, em 2022, mais de US$ 3,5 trilhões em vendas. O segundo colocado no ranking é a economia americana, que exportou US$ 1,5 trilhão a menos que os chineses.

Viagem de Lula causa preocupação em Washington

Não por acaso, a viagem de Lula está causando profunda preocupação na Casa Branca. Fontes em Washington confirmaram que há uma preocupação real de que a visita possa sedimentar uma nova relação entre Brasília e China, criando dificuldades cada vez maiores para os interesses americanos na região. Os investimentos chineses em áreas sensíveis da tecnologia também geram desconforto.

Entre os republicanos, as críticas são ainda mais contundentes. Nesta semana, o senador da Flórida, Marco Rubio, alertou que a aproximação entre Brasil e China era mais um sinal da "desdolarização" do mundo, diante do acordo entre os dois países emergentes para realizar o comércio em moeda local, sem passar pelo dólar.

O temor dos americanos não é apenas comercial. Parte das sanções que o país impõe contra o resto do mundo é financeiro, fechando mercado de capitais e opções de transações. Mas se um sistema paralelo é organizado, tais sanções perdem o efeito.

No caso chinês, analistas e diplomatas deixam claro que a ofensiva comercial e de investimentos é também parte de um esforço de ampliar sua influência geopolítica e ocupar áreas que por décadas foram considerados como quintais dos americanos ou europeus.

A visão chinesa para o mundo seria a do estabelecimento de pactos entre potências que, oficialmente, possam gerar benefícios mútuos. O discurso soa como música aos países do Sul, hesitantes diante do modelo desigual de relação com europeus e americanos.

Num recente estudo, o ex-ministro de Finanças do Chile, Felipe Larraín, e o acadêmico Pepe Zhang apontaram que, de fato, há hoje um maior investimento chinês na América Latina que nos EUA e praticamente o mesmo volume destinado para a Europa.

Parte da explicação seria a necessidade que os chineses continuam tendo em relação ao abastecimento de matéria prima. Mas outro fato fundamental é a onda de restrições impostas por governos como o dos EUA, limitando a venda de ativos nacionais para os chineses, sob o argumento de ameaça à segurança nacional.

Segundo eles, em 2022, a China investiu:

  • US$ 8,4 bilhões na Europa
  • US$ entre 7 e 10 bilhões na América Latina
  • US$ 4,7 bilhões nos EUA

Só o Brasil teria recebido US$ 5,9 bilhões dos chineses em 2021, transformando o país no principal destino de investimentos de Pequim naquele ano.


Xi: onze viagens em 10 anos para América Latina

O volume não ocorre por acaso. O presidente chinês, Xi Jinping, já visitou a América Latina onze vezes desde que assumiu o poder, em 2013. Além disso, Pequim declarou "parceiros estratégicos" países como Chile, México, Peru, Venezuela, Equador, Argentina e, claro, o Brasil.

Num estudo publicado em 2022 pelo Council of Foreign Relations, fica claro ainda que existe uma preocupação real por parte dos EUA de que a China esteja usando essas relações comerciais e de investimentos para atingir metas geopolíticas. Uma delas seria isolar ainda mais Taiwan, ilha que até recentemente contava com o reconhecimento de vários países latino-americanos. Mas com recursos e promessas de investimentos, a China convenceu República Dominicana, Nicarágua e, mais recentemente Honduras, a abandonar o apoio às autoridades em Taipé.

Já em 2021, o almirante americano, Craig Faller, que liderou o Comando Sul, chegou a soar um alerta:

"Estamos perdendo nossa posição de vantagem nesse hemisfério e uma ação imediata é necessária para reverter essa tendência".

Joe Biden de fato agiu, ampliando iniciativas para a região e mesmo para favorecer o comércio com o Brasil. Além disso, fez forte pressão para garantir que Lula fosse primeiro para a Casa Branca, e não para Pequim.

Na Europa, a preocupação também é real sobre o avanço chinês sobre o Brasil e o restante do continente. Num documento produzido pelo Parlamento Europeu no final de 2022, o bloco alertava que, entre 2000 e 2022, o comércio entre a China e América Latina aumentou em 26 vezes.

"A UE, que há muito tempo é o parceiro comercial mais importante da América do Sul e o segundo maior parceiro comercial da América Latina como um todo, tem experimentado uma diminuição em sua participação de mercado em meio à expansão do comércio da China", admitiu o documento obtido pelo UOL.

Sem alinhamento automático

Nem todos dentro do governo brasileiro consideram que uma relação com a China venha isenta de desafios. Um dos temores é a da substituição de uma dependência por outra, principalmente tecnológica.

Em sua posse como chanceler, Mauro Vieira deixou claro que o foco da política externa seria a construção de uma relação sem alinhamentos automáticos. Lula, há poucos dias, ainda afirmou que a parceria com a China não é para que Pequim desembarque e compre os ativos brasileiros. Mas para que construa novos investimentos de forma conjunta.

Os chineses sabem que, do lado brasileiro, o discurso nos próximos dias será o de equilibrar as relações. Em outras palavras: o Brasil não quer ser um mero exportador de commodities para o boom chinês ou um mercado barato para a compra de ativos. E nem quer ficar de fora da cadeia de produção de itens de alto valor agregado. Tampouco quer criar uma dependência em setores estratégicos, como tecnologia ou vacinas.

De fato, em seu documento interno, o Parlamento Europeu alertou no final de 2022 sobre a "implicação de uma dependência assimétrica" da América Latina com a China.

"Há algumas indicações de que a China contribuiu indiretamente para o processo de desindustrialização presente na maioria dos países da América do Sul", afirmou. "Mais importante ainda, os países da América Latina não têm sido capazes de se atualizar em muitas cadeias de valor globais que dependem de insumos da região, tais como soja, minerais, farinha de peixe, com efeitos negativos sobre o valor agregado, produtividade e desenvolvimento tecnológico", apontou.

Pequim já deixou claro que está disposta a rever essa relação, uma velha queixa ainda do período em que Celso Amorim era o chanceler, nos primeiros anos do governo Lula.

Acordos

Alguns dos acordos já anunciados pelo setor privado dão conta da direção que esse reposicionamento vai causar.

A Sinomec e a Sete Partners, por exemplo, firmaram parceria nas áreas de energia renovável, agricultura, enquanto a APEXBRASIL e a Venture Cup China formalizaram parceria para apoiar startups brasileiras a desenvolverem negócios na China, bem como organizar, conjuntamente, a semana da inovação aplicada ao agronegócio e à digitalização.

Um dos acordos da Suzano estabelece o Innovability Hub, na Cidade da Ciência de Zhangjiang, em Xangai. Já a Vale fechou um contrato com a Universidade Tsinghua para intercâmbio de conhecimento técnico, além de outros entendimentos para explorar caminhos de inovação, enquanto a Sete Partners e a Tianjing Food Group se associaram para a criação de uma empresa binacional, visando ampliar investimentos na cadeia agrícola brasileira em diversas áreas, inclusive logística.

A ampliação da internet também é outro foco do Brasil, com acordos que serão anunciados durante a visita de Lula permitindo um maior papel da China na expansão da rede no país.

Num acordo assinado com o governo brasileiro, a empresa chinesa Huawei se comprometerá em colaborar para a expansão da internet no país, garantir maior inclusão digital e facilitar até mesmo a existência da rede em escolas e para permitir o monitoramento de florestas e povos indígenas.

Se Lula vai pedir investimentos para a produção de componentes no Brasil, um acordo que será anunciado também vai permitir uma aproximação institucional entre a empresa e o governo brasileiro.

O entendimento tem como objetivo "estabelecer uma agenda de cooperação para o desenvolvimento de iniciativas voltadas à promoção da inclusão digital e da expansão da conectividade no Brasil, com ênfase no impacto que tais ações podem ter na proteção ao meio ambiente na melhor da educação básica brasileira".

O entendimento vai ser assinado com o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável. Pelo acordo, a Huawei se compromete a dar "informações a respeito de suas experiências com projetos de expansão de conectividade e de inclusão digital, bem como facultar aos membros do Conselho que acompanhem a execução de projetos em desenvolvimento, a exemplo de iniciativas desenvolvidas junto a povos indígenas e organizações da sociedade civil voltadas ao monitoramento da biodiversidade e proteção do território indígena".

A empresa ainda afirma que se empenhará a agir na "busca de respostas para o desafio da expansão da conectividade escolar, colocando sua expertise e sua experiência à disposição dos órgãos e entidades públicos responsáveis por essa agenda". Fica ainda estabelecido que a Huawei buscará "sensibilizar" seus parceiros comerciais e acionistas quanto à importância do tema da inclusão digital e da expansão da conectividade no Brasil. A meta é que a empresa convide esses parceiros comerciais a montar uma articulação "em torno de iniciativas que possam contribuir para o desenvolvimento econômico-social sustentável".

Comércio sem dólar e independência

Mas esses passos não virão sem um preço a ser pago pelos brasileiros. Os chineses esperam do Itamaraty e do Palácio do Planalto uma postura de independência em relação à frente que os americanos tentam criar para conter o avanço dos asiáticos.

Passo dessa independência foi o acordo estabelecido entre os dois países, pelo qual o comércio pode ocorrer sem ter de passar pelo dólar. Para diplomatas brasileiros, trata-se de uma decisão política, com pouco impacto real na redução de custos de operação para as empresas nacionais.

Mas, acima de tudo, um sinal de que a relação entre os dois parceiros não precisa ser mediada pela moeda americana.

O Banco BOCOM BBM anunciou sua adesão ao CIPS (China Interbank Payment System), que é a alternativa chinesa ao Swift. O banco será o primeiro participante direto desse sistema na América do Sul. A sucursal brasileira do Industrial and Commercial Bank of China (Brazil) ainda passa a atuar como banco de compensação do RMB no Brasil.

Nos EUA, o presidente Joe Biden camuflou ainda uma ofensiva contra os chineses com uma nova roupagem e batizou o grupo de "Aliança pela Democracia". Para os mais críticos, o correto seria chama-lo de "aliança anti-regime autoritário chinês".

Outra cobrança dos chineses será por uma postura do Brasil que favoreça uma redefinição do debate dos direitos humanos, no âmbito internacional. Pequim insiste que a agenda internacional precisa lidar com questões sociais e econômicas, e não necessariamente políticas e cívicas.

Não por acaso, os dois países assinarão um acordo de cooperação para combater a fome e a extrema pobreza, além de criar uma aliança internacional neste sentido.

Dentro do governo, há quem questione se essa nova aliança não seria uma forma de responder à Aliança pela Democracia, de Biden.