Jamil Chade

Jamil Chade

Siga nas redes
Reportagem

Direitos humanos não podem ser armas contra emergentes, diz Silvio Almeida

O discurso de direitos humanos não pode ser transformado em uma arma política contra os emergentes, principalmente servindo para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o crescimento econômico do mundo em desenvolvimento.

A visão é do ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, que viaja nesta semana para Nova York. Seu objetivo: conseguir votos para que a candidatura do Brasil para uma vaga no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

No dia 8 de setembro, ele participa de reuniões e eventos na sede da entidade. O Brasil espera conseguir votos suficientes para ser eleito para ocupar uma das cadeiras do órgão central na defesa dos direitos humanos no mundo.

Neste ano, o Conselho escolherá três países latino-americanos para o órgão. Além do Brasil, concorrem Cuba, Peru e República Dominicana.

Em entrevista exclusiva ao UOL antes de sua viagem, o chefe da pasta revelou as prioridades do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e defendeu que, se eleito, o Brasil leve ao Conselho uma "visão atualizada de direitos humanos a partir de uma visão dos emergentes".

O órgão da ONU tem sido palco de uma disputa entre autoridades sobre como lidar com violadores de direitos humanos. O grupo Ocidental insiste na necessidade de que abusos e regimes sejam denunciados e envergonhados em público. Para uma parcela dos países emergentes, tal comportamento não conduz a uma melhoria da situação das vítimas, é seletiva e faria parte de uma estratégia para constranger eventuais rivais.

"Nosso compromisso é o de privilegiar o enfoque preventivo e cooperativo no Conselho de Direitos Humanos, favorecendo o diálogo e a cooperação internacional, a assistência técnica e a criação de capacidades, em lugar da instrumentalização, da polarização e da seletividade", disse. "Nós usaremos nosso assento, primordialmente, para promover a cooperação e o diálogo", insistiu.

"O sistema de direitos humanos nas Nações Unidas não pode tornar-se, apenas, um palco para avaliação seletiva da observância dos direitos humanos por determinados países e fazer vista grossa para violações ocorridas ou causadas por aqueles países que compõem o que Ailton Krenak chama de "clube da humanidade", alertou, numa referência indireta ao comportamento dos países desenvolvidos.

Questionado sobre o impacto da ampliação do Brics para incluir países acusados de graves violações de direitos humanos, como Irã ou Arábia Saudita, Silvio Almeida apontou que tal incorporação não significa que o Brasil "precisa concordar" com tudo e que a temática dos direitos humanos não consta da agenda do BRICS.

Mas alerta:

Temos de ter cuidado para que o discurso de direitos humanos, por mais válido que seja, transforme-se em uma arma política para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o crescimento econômico do mundo em desenvolvimento.

Continua após a publicidade

O ministro ainda chamou a participação do governo de Jair Bolsonaro na agenda de direitos humanos da ONU de "vergonhosa".

Segundo ele, não se tratava apenas de uma questão de ideologia,. "O reacionarismo com que se alinhava tinha propósitos que iam muito além de uma "simples" convicção ideológica", alertou. "Parece que insistência do bolsonarismo de fragilizar a democracia e comprometer as relações internacionais objetivavam ocultar práticas pouco ou nada republicanas, de dilapidação do patrimônio público e obtenção de vantagens pessoais", completou.


Eis os principais trechos da entrevista:

Chade - Por qual motivo o Brasil quer voltar ao Conselho de Direitos Humanos?

Silvio Almeida - O retorno ao Conselho de Direitos Humanos da ONU visa a marcar este novo momento da política brasileira depois de quatro anos de destruição e desmoralização da agenda de direitos humanos levada a cabo pelo governo anterior.O Brasil é um país importante e que já deu contribuições importantes ao Conselho. Queremos voltar ao Conselho porque acreditamos ter muito a contribuir com as discussões dos temas que hoje estão na agenda internacional mas, também, porque almejamos fazer chegar ao Conselho uma concepção atualizada de direitos humanos, a partir da visão de um olhar do Sul Global.

Qual a mensagem que o senhor leva para as delegações em Nova York?

De que o Brasil voltou a ter um compromisso firme com a promoção dos direitos humanos. Sabemos que a gestão passada atuou de maneira vergonhosa durante o último mandato do Brasil no órgão, inclusive questionando consensos construídos a duras penas pela comunidade internacional. Sinto que é quase um dever de nosso país retomar esse protagonismo e trabalhar para reconstruir as pontes com a comunidade internacional.

Na abertura da Assembleia Geral da ONU, em meados de setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva levará em seu discurso uma agenda de direitos humanos?

O discurso certamente será permeado pelo compromisso de seu governo com o combate às desigualdades e a promoção dos direitos humanos. Não há como ser diferente. Foi durante o segundo mandato do presidente Lula que o Conselho foi criado e o Brasil integrou o grupo dos primeiros países membros.

Como o senhor avalia a política de direitos humanos do governo Bolsonaro e sua decisão de apoiar grupos ultraconservadores na agenda internacional?

O governo Bolsonaro negava o multilateralismo e a importância das Nações Unidas que, consideradas de todas as suas limitações, é uma conquista da comunidade internacional. Agora, torna-se mais claro que o reacionarismo com que se alinhava tinha propósitos que iam muito além de uma "simples" convicção ideológica.

Parece que insistência do bolsonarismo de fragilizar a democracia e comprometer as relações internacionais objetivavam ocultar práticas pouco ou nada republicanas, de dilapidação do patrimônio público e obtenção de vantagens pessoais. É o que as investigações conduzidas pela justiça brasileira têm apontado.

Além do mais, atacar minorias e retirar direitos sociais era parte de um projeto de tomada do Estado brasileiro por interesses privados, completamente apartados dos interesses do conjunto do povo brasileiro.

O que o governo fará para se apresentar como um candidato viável e para desfazer as práticas dos últimos quatro anos?

Como você sabe, como candidato, o Brasil submeteu uma longa lista de compromissos voluntários. Nesse documento, já é visível a mudança de postura da atual gestão. Pretendemos voltar a promover temas como a equidade de gênero, o combate ao racismo, os direitos da comunidade LGBTQIA+, o combate ao discurso de ódio, dentre outros.

A resposta institucional aos atos criminosos ocorridos nos últimos anos, que culminaram no dia 8 de janeiro, mostrou ao mundo que a democracia em nosso país é inegociável.

Quais são os novos compromissos que o governo está disposto a assumir?

Queremos fortalecer e aprimorar o sistema internacional de direitos humanos e o Conselho de Direitos Humanos, de forma integral e abrangente. Nosso compromisso é o de privilegiar o enfoque preventivo e cooperativo no Conselho de Direitos Humanos, favorecendo o diálogo e a cooperação internacional, a assistência técnica e a criação de capacidades, em lugar da instrumentalização, da polarização e da seletividade.

Continua após a publicidade

Em contexto de crescentes ameaças à democracia no país e no mundo, nosso compromisso é o de combater todas as formas de violência associadas a discursos de ódio e ao extremismo e promover ambiente propício para o exercício da liberdade de expressão.

Também nos comprometemos a redobrar esforços internacionais direcionados ao combate a todas as formas de violência contra mulheres e meninas, com ênfase na prevenção e no combate ao feminicídio e à violência política, assim como na proteção a mulheres em situação de vulnerabilidade

E qual o compromisso do governo com indígenas, negros e outras populações vulneráveis?

Vamos apoiar iniciativas que reconheçam o papel exercido pelos povos indígenas em favor da proteção do meio ambiente e da biodiversidade e no combate à exploração ilegal ou predatória de suas terras.

Nosso compromisso é o de priorizar iniciativas de combate ao racismo estrutural e à violência policial, tanto no âmbito doméstico, quanto internacional. O racismo deve ser encarado como um problema global e diretamente vinculado às questões de natureza economia e política. O que quero dizer é que combater a pobreza também deve ser combater o racismo. Lutar pela democracia e contra o avanço do ódio deve necessariamente ser uma luta sem fronteiras contra o racismo em todas as suas formas"

Também vamos apoiar iniciativas voltadas ao combate à violência e à exploração sexual de crianças e adolescentes, além de apoiar a negociação de instrumento juridicamente vinculante sobre os direitos das pessoas idosas no âmbito da ONU e a aplicação de uma perspectiva transversal e interseccional sobre os direitos das pessoas com deficiência, em todos os temas tratados pelo Conselho Direitos Humanos.

Continua após a publicidade

Quando o sr. fez seu primeiro discurso na ONU, no início do ano, parte da mensagem se referia ao direito ao desenvolvimento. Qual o compromisso do governo neste sentido?

Apoiar debates e iniciativas relacionadas ao direito ao desenvolvimento, inclusive no que se refere à reflexão sobre a elaboração de documento juridicamente vinculante sobre a matéria, assim como no marco da implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Também nos comprometemos a promover a realização equitativa dos direitos econômicos, sociais e culturais, particularmente daqueles relacionados à inclusão e à justiça social, ao combate à fome e à pobreza, assim como à garantia dos direitos humanos à educação, à saúde, à alimentação e à moradia adequada, naquilo que temos chamado de direito ao desenvolvimento sustentável.

No que se refere ao meio ambiente, o que o sr. dirá às demais delegações sobre o compromisso do país?

Será o de apoiar o pleno reconhecimento do direito humano a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável, em bases equitativas e não discriminatórias. Também nos comprometemos a participar ativamente da negociação de um instrumento juridicamente vinculante sobre empresas e direitos humanos, além de organizar eventos, promover contatos permanentes e estabelecer diálogo e consulta com representantes da sociedade civil.

Mortes por parte de policiais continuam a ocorrer no Brasil. Como o senhor pretende mudar essa realidade?

Esse é um dos principais desafios que temos e sua solução depende não apenas do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, mas também de outros Ministérios e instâncias, a exemplo do MJSP, do MIR, dos Estados e dos Municípios.

É preciso reunir os diversos setores do governo federal, os governadores e membros de outros poderes para um grande pacto nacional pela vida, sobretudo de jovens pobres e negros, maiores vítimas da violência policial e da violência de maneira geral.

Nas últimas semanas, o Ministério dos Direitos Humanos não tem medido esforços para mobilizar todos os entes e instituições na busca de uma solução conjunta e definitiva para essa questão que passe pelo combate e responsabilização de operações policiais letais ou com uso de extrema violência. Recentemente, nós chamamos uma reunião com os representantes das ouvidorias de polícia dos Estados brasileiros com esse objetivo. Na oportunidade, reforcei que este Ministério não admite o uso indiscriminado da força, e que esta só pode ser utilizada nos limites da legalidade, o que obviamente não se coaduna com episódios de assassinatos e execuções brutais a que temos assistido.

Desde os primeiros dias de janeiro deste ano, nós temos nos manifestado para defender a ampliação do uso de câmeras nas fardas de policiais. Posicionamento que foi reforçado no último mês pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, após se reunir extraordinariamente em razão da morte do adolescente de 13 anos, Thiago Flausino, na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. O sucesso dessa política demonstrado pela ciência faz com que ela não apenas tenha que ser reforçada e ampliada nas regiões em que é aplicada, mas também que seja estendida a todas as unidades da federação.

Existem queixas por parte de grupos de ativistas de que, uma vez mais, a agenda sobre memória, verdade e Justiça no que se refere ao golpe de 1964 não está recebendo a devida atenção. A recente crise de 8 de janeiro e a necessidade de uma nova relação com as Forças Armadas têm sido um obstáculo nessa agenda?

A reconstrução da agenda de memória, verdade e defesa da democracia está mais forte do que nunca. Deste janeiro, o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania tem realizado várias atividades para retomada das agendas institucionais de preservação da memória, da verdade, da luta pela democracia e justiça social.

Na semana passada, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania participou de uma série de eventos, em diferentes estados brasileiros, de celebração aos 44 anos da Lei da Anistia.

Diversas estruturas ministeriais possuem, hoje, em sua organização, uma assessoria dedicada ao tema. Para citar um exemplo, em mais de uma ocasião eu estive reunido com representantes do Movimento Mães de Maio, que clama por justiça pelas mais de 600 execuções, realizadas por agentes do Estado, ocorridas no ano de 2006 em São Paulo e na Baixada Santista. Ouvimos e estamos tratando suas reivindicações no âmbito das competências do nosso ministério.

Importante recordar que, em janeiro deste ano, uma das primeiras iniciativas do governo Lula foi o reestabelecimento da comissão de Anistia e a reconfiguração dela como uma comissão de Estado. Reconduzimos ao cargo de presidenta da comissão a professora Eneá de Stutz e Almeida, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), especialista em Justiça de Transição, Estado de direito, democracia e direitos humanos.

A expansão dos Brics para incluir países denunciados por graves violações de direitos humanos afetará a postura do Brasil na agenda internacional de direitos humanos?

Como você sabe, a temática dos direitos humanos não consta da agenda do BRICS. O Brasil sempre foi um país com uma diplomacia muito pragmática. Não precisamos concordar com tudo para mantermos relações proveitosas ao país com x, y ou z.

Temos de ter cuidado para que o discurso de direitos humanos, por mais válido que seja, transforme-se em uma arma política para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o crescimento econômico do mundo em desenvolvimento.

O governo tem sido cobrado por entidades da sociedade civil a tomar uma postura mais vocal contra as violações cometidas na Venezuela, Arabia Saudita, El Salvador ou Irã. O Brasil usará seu assento no Conselho para pressionar por reformas nesses casos?

Nós usaremos nosso assento, primordialmente, para promover a cooperação e o diálogo. O sistema de direitos humanos nas Nações Unidas não pode tornar-se, apenas, um palco para avaliação seletiva da observância dos direitos humanos por determinados países e fazer vista grossa para violações ocorridas ou causadas por aqueles países que compõem o que Ailton Krenak chama de "clube da humanidade".

Qual deve ser o destino dado ao relatório promovido pela ONU sobre a China e que cita abusos de direitos humanos?

Da parte do Brasil, o que podemos esperar é que o Escritório do Alto Comissário para Direitos Humanos da ONU e a China encontrem uma forma de estabelecer um diálogo construtivo.

Como Ministro de Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, me preocupo mais com o destino das centenas de relatórios que falam sobre desafios enfrentados globalmente e, particularmente, pelos brasileiros, como o racismo, a falta de acesso a medicamentos e vacinas, o crescimento da pobreza e da fome, os abismos enfrentados pelas mulheres na busca por igualdade, a exploração sexual de crianças, as condições precárias dos trabalhadores.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deixe seu comentário

Só para assinantes