Jamil Chade

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Reportagem

Crise diplomática e guerra levam G20 a aprovar acordo vago e esvaziado

O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi - anfitrião da cúpula do G20 -, anunciou neste sábado que os líderes das maiores economias do mundo chegaram a um consenso sobre a declaração final da reunião. Mas, diante de uma das maiores crises diplomáticas em décadas, de um mundo fragmentado, guerra e desconfiança entre potências, o texto foi esvaziado.

O caráter tímido ou quase inexistente de entendimentos em setores críticos da o tom da dificuldade que o Brasil terá ao assumir a presidência do G20, a partir de agora.

No caso do evento de 2023, a declaração final foi considerada por diplomatas como "fraca" e com compromissos apenas vagos. Não houve sequer uma referência por uma ampliação do Conselho de Segurança da ONU, enquanto na área ambiental o texto continua a falar apenas em promessas.

Americanos e europeus tampouco conseguiram incluir no texto a palavra "condenação" diante da invasão russa, enquanto Washington e Pequim entraram em conflito sobre quem iria sediar a cúpula em 2026.

Havia o temor de que, diante da situação na guerra na Ucrânia, o grupo que reúne as maiores economias do planeta terminasse a reunião sem um entendimento. O sinal que isso enviaria para a comunidade internacional seria, segundo negociadores, "desastroso".

Um entendimento foi feito para que europeus e americanos aceitassem ceder em algumas exigências, suavizando as críticas contra a invasão russa. Já Moscou, que não queria qualquer referência à guerra e insistia que o G20 é um grupo econômico, também cedeu e aceitou a menção ao conflito.

Coube ao grupo de diplomatas de economias emergentes, como brasileiros e indianos, a busca por um meio termo na negociação. "Anuncio a adoção da declaração", afirmou Modi, elogiando o trabalho dos negociadores.

Mas o texto foi considerado, inclusive por negociadores, como um dos mais vagos já adotados pelo G20, sem compromissos reais ou entendimentos concretos que possam permitir um avanço do tratamento de crises internacionais. Um dos diplomatas ainda admitiu ao UOL que a falta de ações é simplesmente "um espelho do mundo que vivemos hoje".

Países mantém sua visão sobre a guerra:

Como não houve um acordo sobre a situação da Ucrânia, o texto da declaração apenas diz que governos "reiteram suas posições nacionais" e insistem que todos os Estados devem agir de maneira consistente com os Propósitos e Princípios da Carta da ONU em sua totalidade. "De acordo com a Carta da ONU, todos os Estados devem se abster da ameaça de uso da força ou de buscar aquisição territorial contra a integridade territorial e a soberania ou independência política de qualquer Estado".

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O uso ou a ameaça de uso de armas nucleares é inadmissível.

Atendendo aos russos, o texto diz que os governos reafirmam que o G20 é "o principal fórum para a cooperação econômica internacional e reconhecendo que, embora o G20 não seja a plataforma para resolver questões geopolíticas e de segurança, reconhecemos que essas questões podem ter consequências significativas para a economia global".

- Os países ainda "destacam o sofrimento humano e os impactos negativos adicionais da guerra na Ucrânia em relação à segurança alimentar e energética global, às cadeias de suprimentos, à estabilidade macrofinanceira, à inflação e ao crescimento, o que complicou o ambiente político para os países, especialmente os países em desenvolvimento e os menos desenvolvidos, que ainda estão se recuperando da pandemia de covid-19, e a interrupção econômica que prejudicou o progresso em direção aos ODSs. Havia diferentes pontos de vista e avaliações da situação".

Os governos pedem aos russos e ucranianos a "implementação total, oportuna e eficaz do acordo para permitir exportar grão ucranianos, para garantir as entregas imediatas e desimpedidas de grãos, alimentos e fertilizantes/insumos da Federação Russa e da Ucrânia". Isso é necessário para atender à demanda dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, especialmente os da África.

Pede a "interrupção da destruição militar ou de outros ataques à infraestrutura relevante". Também expressamos profunda preocupação com o impacto adverso que os conflitos têm sobre a segurança dos civis, exacerbando assim as fragilidades e vulnerabilidades socioeconômicas existentes e dificultando uma resposta humanitária eficaz.

O texto ainda faz um apelo:

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"Pedimos a todos os membros que defendam os princípios do direito internacional, inclusive a integridade territorial e a soberania, o direito humanitário internacional e o sistema multilateral que protege a paz e a estabilidade. A resolução pacífica de conflitos e os esforços para enfrentar crises, bem como a diplomacia e o diálogo, são cruciais. Nós nos uniremos em nossos esforços para lidar com o impacto adverso da guerra na economia global e daremos as boas-vindas a todas as iniciativas relevantes e construtivas que apoiem uma paz abrangente, justa e duradoura na Ucrânia, que defenda todos os Objetivos e Princípios da Carta das Nações Unidas para a promoção de relações pacíficas, amigáveis e de boa vizinhança entre as nações".

Protecionismo e neocolonialismo ambiental

Num dos trechos da declaração, os governos ainda chegam a um acordo tímido sobre a necessidade de que políticas ambientais e comerciais estejam dentro das regras existentes. Mas sem qualquer novo compromisso.

O Brasil, junto com outras economias emergentes, questionam leis europeias que permitem o aumento de tarifas para produtos importados, sob argumentos ambiental.

No texto final, fica apenas estabelecido que os governos do G20 se comprometem em:

Assegurar que as políticas comerciais e ambientais se apoiem mutuamente, de acordo com a OMC e os acordos ambientais multilaterais.

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Nos bastidores, o governo brasileiro insistia que, na declaração final da cúpula deste fim de semana, uma referência explícita fosse feita às barreiras comerciais estabelecidas pela Europa, usando o argumento ambiental. Pela regra, produtos que tenham promovido um desmatamento recente sofreriam tarifas mais altas para entrar no mercado europeu.

Nos últimos dias, enquanto o G20 era preparado, o Brasil foi um dos 16 países que enviou aos europeus uma carta na qual denuncia a lei, enquanto no Ministério do Desenvolvimento, Comércio e Indústria, não se exclui que o governo acione a OMC contra a nova regra europeia. No ano passado, sob Bolsonaro, a mesma carta já havia sido enviada, sem resultados.

Lula ainda tem insistido em criticar a UE, chamando a iniciativa de "neocolonialismo verde". No G20, uma vez mais, o tema estará no debate do presidente com líderes estrangeiros.

Há poucas semanas, na cúpula do Brics, o brasileiro deu o tom do que seria sua reação aos europeus.

"Não podemos aceitar um neocolonialismo verde que impõe barreiras comerciais e medidas discriminatórias, sob o pretexto de proteger o meio ambiente".
Luiz Inácio Lula da Silva

O governo brasileiro já deixou claro que a "punição" não pode ser a forma de lidar com o meio ambiente entre países.

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Sem compromissos ambientais novos e só promessa de dinheiro

O capítulo ambiental do acordo tampouco foi considerado como ambicioso. Não houve qualquer compromisso novo em redução de emissões de gases de efeito estufa ou desmatamento.

No que se refere aos recursos que países ricos prometeram aos emergentes para ajudar na transição climática, o texto apenas fala em promessas.

Os governos, portanto, afirma que:

Observam a necessidade de US$ 5,8 a 5,9 trilhões no período pré-2030 para os países em desenvolvimento, em especial para que implementem seus compromissos ambientais, bem como a necessidade de US$ 4 trilhões por ano para tecnologias de energia limpa até 2030 para atingir emissões líquidas zero até 2050.

Lembram e reafirmam o compromisso assumido em 2010 pelos países desenvolvidos com a meta de mobilizar conjuntamente US$ 100 bilhões em financiamento climático por ano até 2020, e anualmente até 2025, para atender às necessidades dos países em desenvolvimento, no contexto de ações significativas de mitigação e transparência na implementação. Os contribuintes dos países desenvolvidos esperam que essa meta seja atingida pela primeira vez em 2023.

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Sem acordo sobre Conselho de Segurança

Apesar da demanda de vários países em desenvolvimento, não houve um acordo sobre como o Conselho de Segurança da ONU deva se expandir. O Brasil quer uma das vagas permanentes.

O texto, porém, apenas admite que mudanças são necessárias:

"A ordem global passou por mudanças drásticas desde a Segunda Guerra Mundial devido ao crescimento econômico e à prosperidade, à descolonização, aos dividendos demográficos, às conquistas tecnológicas, ao surgimento de novas potências econômicas e ao aprofundamento da cooperação internacional. As Nações Unidas devem responder a todos os membros, ser fiéis aos seus propósitos e princípios fundadores de sua Carta e adaptadas para cumprir seu mandato. Nesse contexto, lembramos a Declaração sobre a Comemoração do 75º aniversário das Nações Unidas, que reafirmou que nossos desafios estão interconectados e só podem ser enfrentados por meio de um multilateralismo revigorado, reformas e cooperação internacional. A necessidade de um multilateralismo revitalizado para enfrentar adequadamente os desafios globais contemporâneos do século XXI e para tornar a governança global mais representativa, eficaz, transparente e responsável foi expressa em vários fóruns. Nesse contexto, é essencial um multilateralismo e uma reforma mais inclusivos e revigorados com o objetivo de implementar a Agenda 2030".

Biden, Lula e Modi se unem por reforma de Banco Mundial...prevista desde 2009

Um dos poucos anúncios de acordo foi sobre a questão da reformas das instituições financeiras. Mas não foram poucos os negociadores que lembraram que o mesmo acordo já havia sido adotado depois da crise econômica de 2008. Mas a reforma jamais foi estabelecida.
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Num encontro paralelo, os presidentes Joe Biden e Luiz Inácio Lula da Silva se uniram a Modi para apoiar o compromisso do G20 na reforma dos bancos multilaterais.
"Nós, os líderes do Brasil, da Índia, da África do Sul e dos Estados Unidos, nos encontramos à margem da Cúpula de Líderes do G20, em Nova Délhi, para reafirmar nosso compromisso com o G20, o principal fórum para a cooperação econômica internacional, buscando soluções para o nosso mundo", disseram os líderes.
"Na condição de atual e três vindouras presidências de turno do G20, nós continuaremos avançando a partir do progresso histórico alcançado na presidência da Índia para enfrentar os desafios globais", afirmam.
"Neste espírito, juntamente com o presidente do Banco Mundial, nós saudamos o compromisso do G20 de tornar bancos multilaterais de desenvolvimento maiores, melhores e mais eficazes. Este compromisso sublinha o que podemos fazer, trabalhando em conjunto no G20, para apoiar os nossos povos na direção de um mundo melhor", completam.
Segundo Nirmala Sitharaman, presidente da negociação para a questão financeira, explicou que existe uma demanda cada vez maior pela atuação dessas instituições, o que exige que elas chegam "melhores e maiores".
Os governos também concordam em buscar formas para que emergentes tenham maior voz nas decisões. As medidas, segundo ela, vão atender mais os interesses dos emergentes e US$ 200 bilhões de empréstimos extras podem ser fornecidos na próxima década.
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Lula cobra países ricos e cita mortes no RS

Citando as vítimas do ciclone que atingiu o Sul do Brasil nos últimos dias, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou seu discurso de abertura na cúpula do G20, em Nova Deli, para cobrar dos países ricos que cumpram suas promessas de ajudar os emergentes a lidar com as mudanças climáticas, enquanto apresenta dados de que o desmatamento na Amazônia caiu.

Ele ainda anunciou que, na presidência do grupo em 2024, o Brasil irá lança uma mobilização internacional para tentar lidar com a questão do meio ambiente e clima.

"O descompromisso com o meio ambiente nos leva a uma emergência climática sem precedentes", disse Lula. "O aquecimento global modifica o regime de chuvas e eleva o nível dos mares. As secas, enchentes, tempestades e queimadas se tornam mais frequentes e minam a segurança alimentar e energética", afirmou.

Como exemplo, o presidente usou o desastre natural no Sul do Brasil, que deixou dezenas de vítimas.

"Agora mesmo no Brasil, o estado do Rio Grande do Sul foi atingido por um ciclone que deixou milhares de desabrigados e dezenas de vítimas fatais", afirmou. "Se não agirmos com sentido de urgência, esses impactos serão irreversíveis", insistiu.

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Lula foi cobrado pela oposição pelo fato de não ter ido ao Sul. No G20, sua presença era considerada como obrigatória, já que o Brasil assume a presidência do grupo.

Na cúpula, o tom usado por Lula e suas iniciativas deixaram claro que o tema ambiental será uma das prioridades do governo, quando o Brasil assumir o G20 em dezembro. Para diplomatas estrangeiros, a iniciativa é considerada como uma tentativa do brasileiro de se reposicionar como protagonista no debate climático, depois de anos de negacionismo por parte de Jair Bolsonaro.

Mas a ofensiva brasileira não se limita aos discursos e vem permeada por cobranças aos países desenvolvidos.Para os governos do G20, ainda que radicalmente diferente de Bolsonaro, o posicionamento brasileiro agora também significa que a agenda virá repleta de cobranças e uma coordenação entre economias em desenvolvimento. Nos bastidores, o Brasil tem organizado essa frente com os demais países emergentes, que também insistem em responsabilizar as economias ricas.

Em seu discurso neste sábado, o brasileiro ainda voltou a destacar que a questão climática tem um responsável claro: o mundo em desenvolvimento.

"Os efeitos da mudança do clima não são sentidos por todos da mesma forma. São os mais pobres, mulheres, indígenas, idosos, crianças, jovens e migrantes, os mais impactados", disse.

Sua escolha, porém, foi por colocar a responsabilidade nos países ricos.

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"Quem mais contribuiu historicamente para o aquecimento global deve arcar com os maiores custos de combatê-la", disse. "Esta é uma dívida acumulada ao longo de dois séculos", insistiu.

Segundo ele, desde a COP de Copenhague em 2009, "os países ricos deveriam prover 100 bilhões de dólares por ano em financiamento climático novo e adicional aos países em desenvolvimento".

Mas alertou: "essa promessa nunca foi cumprida".

Lula ainda mandou um recado aos europeus e americanos sobre as futuras negociações. "De nada adiantará o mundo rico chegar às COPs do futuro vangloriando-se das suas reduções nas emissões de carbono se as responsabilidades continuarem sendo transferidas para o Sul Global", disse.

Segundo ele, recursos não faltam. "Ano passado, o mundo gastou 2,24 trilhões de dólares em armas. Essa montanha de dinheiro poderia estar sendo canalizada para o desenvolvimento sustentável e a ação climática", defendeu.

Lula anuncia mobilização internacional

O brasileiro optou por usar praticamente todo seu discurso de abertura para insistir sobre a questão climática e sinalizar que esse será um dos temas prioritários quando o Brasil assumir a presidência do G20, a partir de dezembro.

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Lula defendeu que o G20 impulsione esse esforço, respeitando o conceito de responsabilidades comuns, porém diferenciadas e valorizando todas as três convenções da Rio 92: de clima, biodiversidade e desertificação. "A melhor forma de sermos ambiciosos é garantir o sucesso do Exercício de Avaliação Global do Acordo de Paris, na COP28, e da negociação de novas metas quantitativas", insistiu.

Segundo ele, o Brasil vai lançar, durante a presidência do G20, uma Força Tarefa para Mobilização Global contra a Mudança do Clima.

"Queremos chegar na COP 30, em 2025, com uma agenda climática equilibrada entre mitigação, adaptação, perdas e danos e financiamento, assegurando a sustentabilidade do planeta e a dignidade das pessoas", disse. "Esperamos contar com o engajamento de todos. Para que a beleza da Terra não seja apenas uma fotografia vista do espaço", insistiu.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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