Governo adia visita acertada por Bolsonaro de relatora da ONU para mulheres
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva adiou a viagem de uma relatora da ONU ao Brasil, mas até agora não ofereceu novas datas para que a missão ocorra.
A previsão era de que a visita da relatora especial sobre Direitos das Mulheres, Reem Alsalem, ocorresse nos primeiros dias de agosto. Mas, faltando poucas semanas para a visita, o governo comunicou que a viagem não ocorreria.
Com suas ideias sobre gênero e sexo acolhidas pelo governo de Jair Bolsonaro, sua intenção era a de visitar o Brasil ainda em 2022. No entanto, por problemas em sua equipe, a missão ficou para 2023. Agora, o novo governo coloca a viagem em compasso de espera.
Oficialmente, a informação prestada para a especialista foi de que uma nova data seria estudada. Ao UOL, o ministério das Mulheres explicou que foi proposto o adiamento da visita "e que a pasta está em tratativas para marcar uma nova data, com a recomendação de que seja em 2024".
"O motivo do adiamento refere-se ao fato de que o Ministério das Mulheres conta com apenas nove meses de existência, sendo responsável pela formulação, coordenação e execução de políticas e diretrizes de garantia dos direitos das mulheres, desafio de alta complexidade que demanda tempo para consolidação", disse a pasta, em um comunicado ao UOL.
"Ponderou-se, ainda, que o mês de agosto estava marcado por eventos, tais como Agosto Lilás, aniversário da Lei Maria da Penha, Marcha das Margaridas, Cúpula da Iniciativa G20 Empower, Conferência Ministerial do G20 sobre o Empoderamento das Mulheres e Cúpula da Amazônia, o que faria com que a equipe do Ministério não pudesse atender com a dedicação necessária às altas autoridades que atuam na pauta relativa às mulheres", explicou o ministério.
"O Brasil mantém convite permanente a todos os relatores especiais e peritos independentes do Conselho de Direitos Humanos para visitas oficiais ao país. Portanto, tratativas estão em andamento para alinhar possíveis novas datas para a recepção da Relatora Especial pelo Estado brasileiro", destaca a pasta.
Nas redes sociais, Reem se limitou a dizer que "lamentava muito" o adiamento da missão e que iria conversar com a diplomacia nacional para "identificar novas datas". "Continuo comprometida em conduzir essa importante visita ainda neste ano", escreveu.
A relatora, em comunicados com o governo brasileiro, ofereceu datas alternativas para 2023. Seu mandato vence em junho de 2024 e, para cumprir seu trabalho e poder ter seu cargo renovado por mais dois anos, ela precisa realizar visitas a países. Uma de suas apostas era uma missão ao Brasil.
Três meses depois do adiamento, nenhuma nova data foi oferecida pelo governo.
Visita acertada no governo Bolsonaro
A relatora havia solicitado uma visita ao Brasil ainda no governo de Jair Bolsonaro e a agenda havia sido acordada com a pasta da então ministra e hoje senadora Damares Alves. Naquele momento, porém, a equipe da relatora passava por uma mudança, o que obrigou a especialista a pedir um adiamento da missão.
Nos bastidores, porém, houve um entendimento no governo Lula de que certas visões da relatora não condizem com a compreensão de direitos humanos por parte das autoridades. Ela, na ONU, também vive um questionamento.
Outro ponto de discórdia é a lei de alienação parental, aprovada no governo Lula, em 2010.
Assim que o petista venceu as eleições em 2022, Reem emitiu um apelo para que seu governo eliminasse a lei que, segundo ela, "pode levar à discriminação contra mulheres e meninas, especialmente em batalhas de custódia em tribunais familiares".
"Hoje conclamamos o recém-eleito Governo do Brasil a fortalecer sua determinação de acabar com a violência contra mulheres e meninas e pedimos o fim da aplicação legal de longa data do conceito de alienação parental e variações semelhantes em casos de violência doméstica e abuso, que penalizam mães e filhos no Brasil", escreveu em novembro do ano passado.
ONGs que denunciam obstáculos ao reconhecimento legal do gênero
Uma carta assinada por 500 entidades de todo o mundo e 800 pessoas, publicada no dia 18 de maio, revela o descontentamento de uma ala da sociedade civil.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receber"Manifestamos nossa profunda preocupação com uma série de declarações e ações deletérias da atual Relatora Especial da ONU para Violência contra Mulheres e Meninas, suas causas e consequências, Reem Alsalem", afirmam.
Entre os grupos estão também entidades nacionais, como a Articulação Brasileira de Lésbicas, Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), Associação Brasileira LGBTI+ (ABGLT), Associação Nacional de Travestis e transexuais do BRASIL (ANTRA), Conectas Direitos Humanos, Instituto Marielle Franco e Rede Nacional de Mulheres Negras no Combate à Violência.
"Para nossa consternação, a Relatora Especial tem defendido, de maneira persistente, obstáculos e condicionantes adicionais para o reconhecimento legal do gênero, o que enfraquece a proteção dos direitos das pessoas trans, comprometendo a promoção da autonomia corporal para todes", diz o texto.
"Em lugar de fortalecer a proteção de grupos marginalizados e contribuir para os legados progressistas de suas antecessoras no posto e dos movimentos feministas — que, incansavelmente, defenderam a criação do mandato — observamos que a atual Relatora Especial está utilizando indevidamente sua posição e poder para advogar por políticas discriminatórias contra as pessoas trans e aplicando, de maneira distorcida, princípios e parâmetros consagrados em matéria de direitos humanos", declararam as entidades.
"A Relatora Especial alega que a sua posição é apoiada por "organizações feministas". No entanto, diversas organizações e ativistas feministas e pelos direitos das mulheres, direitos humanos e direitos LGBTIQ+ tem manifestado desacordo com as opiniões que ela expressa", insistem.
"As posições e ações publicamente adotadas por Reem Alsalem comprometem fundamentalmente o mandato destinado a tratar a violência contra as mulheres", completam.
Apoio à relatora da ONU
Reem Alsalem, porém, tem o apoio de outras correntes de ativistas feministas, incluindo organizações envolvidas em esforços nacionais e internacionais para revogar leis de alienação parental, que também tem sido criticadas pela relatora.
Em julho passado essas redes publicaram uma carta de apoio ao mandato que teve mais de duas mil assinaturas. Aderiram ao gesto entidades como o European Center of the International Council of Women, Fair Play for Women, Hague Mothers, HEAL Survival Group, National Council of Women (Reino Unido), LGB Alliance e Sex Matters.
Esse apoio, porém, não impediu que ela fosse alvo de críticas por conta de alguns de seus posicionamentos.
No final do ano de 2022, quando a Escócia aprovou uma nova lei de identidade de gênero, ela escreveu uma carta ao Parlamento do país questionando seu conteúdo. Contestou o direito à autoidentificação de gênero, alegando que sua legalização ampliava os riscos de "violência masculina".
Naquele mesmo mês, a entidade Sexual Rights Initiative anunciou que iria deixar de manter relações com Reem Alsalem, por conta de sua posição sobre identidade de gênero.
Em resposta, ela publicou no site da ONU uma longa carta na qual esclarece sua posição. Nela, a relatora insiste que os ataques "deturpam" sua posição sobre os "direitos das pessoas LGBTI, inclusive das pessoas trans, e as normas internacionais de direitos humanos".
Reem reconhece que, "de acordo com os padrões de direitos humanos, os Estados têm a obrigação fundamental de facilitar o reconhecimento legal de pessoas com diversidade de gênero, de forma consistente com os direitos à liberdade de discriminação, proteção igual perante a lei, privacidade, identidade e liberdade de expressão". "Entretanto, o direito ao reconhecimento legal de gênero não implica o direito à autoidentificação não regulamentada da identidade de gênero sem a devida proteção e avaliação de riscos", completou.
Para os grupos que a questionam, essas posições divergem de definições e interpretações nos sistemas internacional e interamericano de direitos humanos, como a Opinião Consultiva 24 da Corte Interamericana. Eles alegam que tampouco condizem com decisões do STF com respeito ao direito de autodeterminação da identidade de gênero, ou com os compromissos do atual governo com os direitos humanos e a saúde das pessoas LGBTQIA+.
Se a relatora conta com o apoio de entidades de diferentes segmentos da sociedade, sua visão sobre gênero também tem eco entre uma parcela da que demonstrou, no Brasil, o repúdio ao conceito de gênero manifestado por autoridades do governo Bolsonaro, além de membros do campo ultraconservador transnacional. Em agosto de 2023, um alto funcionário da organização norte-americana Alliance Defending Freedom (ADF), Giorgio Mazzoli, publicou na 'Newsweek' um artigo em sua defesa, que acusa a oposição a ela de estar violando sua liberdade de expressão.
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