"Brasil precisa olhar para África com respeito", diz especialista
"O continente africano não pode ser observado como um lugar de esmolas, de caridade ou de favores. Ao contrário, a África é um ambiente onde grandes negócios acontecem, por isso muitas multinacionais de diversos lugares do planeta já operam na África".
O alerta é de João Bosco Monte, presidente do Instituto Brasil África e coordenador-geral do Fórum Brasil África.
Em entrevista à coluna, o especialista explica como o afastamento de Jair Bolsonaro aos temas de interesse da África e o fato de ele jamais ter visitado o continente prejudicaram os interesses do país. Segundo ele, essa distância "favoreceu que alguns países tomassem a frente no diálogo de forma mais assídua do que o Brasil".
Bosco defende que haja uma mudança na forma de o Brasil olhar para a África. "O continente africano não pode ser observado como um lugar de esmolas, de caridade ou de favores. Ao contrário, a África é um ambiente onde grandes negócios acontecem, por isso muitas multinacionais de diversos lugares do planeta já operam na África", disse.
Na semana que vem, o Instituto que ele preside realiza em São Paulo o Fórum Brasil África, reunindo líderes políticos e empresariais de diferentes países nos dias 31 de outubro e 1 de novembro.
Eis os principais trechos da entrevista:
Chade: Qual foi o impacto de 4 anos de Jair Bolsonaro para a relação entre Brasil e África?
Bosco: O ex-presidente Bolsonaro, durante os 4 anos como presidente do Brasil, não definiu qual seria a política externa do seu governo. Não definiu para onde e com quem o Brasil conversaria. E com o continente africano, essa postura de indefinição e descaso ficou mais nítida. Ele nunca visitou nenhum dos 54 países africanos, não estabeleceu nenhum diálogo constante e perene com muitas nações com as quais o Brasil mantinha relações desde muito tempo.
Isso causou um impacto muito ruim porque a imagem do Brasil na comunidade internacional, mais especificamente na África, ficou distante daquilo que tínhamos como uma agenda natural. O Brasil sempre foi muito parceiro de diversos países africanos e teve muitas iniciativas de cooperação no continente.
Os africanos têm um carinho especial e respeito pelo Brasil e Bolsonaro além de não ter capacidade de enxergar esta realidade, foi mal assessorado com relação à importância político-estratégica da África. Como consequência mais grave da sua incapacidade de enxergar o óbvio, Bolsonaro afastou o Brasil da Africa e favoreceu que alguns países tomassem a frente no diálogo de forma mais assídua do que o Brasil.
Como o Brasil é visto hoje, com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
O presidente Lula, no início de seu governo, apontou que conversaria com muitos. Logo no primeiro dia de seu governo, dia 01 janeiro de 2023, ele teve uma sequência interminável de encontros com dignatários de muitos países que vieram para sua posse, o que mostrou o que viria a acontecer no futuro. Na sequência, Lula empreendeu viagens para diversos lugares, passando pelos Estados Unidos, pela Argentina, esteve na Ásia, esteve na Europa e no continente africano. Isso demonstra que existe uma disposição de Lula para conversar e se projetar em muitos ambientes e apresentar uma nova agenda de reposicionamento do Brasil no mundo.
O Brasil voltou a fazer parte da agenda internacional e Lula com a sua experiencia e o respeito que tem pelos seus homólogos, sabe muito bem como aproveitar as oportunidades para posicionar o país como um importante ator global. Em muitas conversas que tive com lideranças empresariais e chefes de governos africanos ficou claro que Lula trouxe para o Brasil a relevância que o país precisava recuperar.
China, India, Russia e Turquia estão muito presentes na África. Há como recuperar o espaço?
Nos últimos anos nós presenciamos um movimento de nações que começaram a olhar para o continente africano com muita curiosidade. Uma avidez para negócios, para cooperação, parcerias e identificação de oportunidades. A China, a Rússia, a Índia e a Turquia chegaram no continente africano de forma muito intensa, notadamente nos últimos 10 anos. Em contrapartida, o Brasil perdeu o seu espaço e enquanto nós nos afastamos, outros se aproximaram.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberO presidente da Turquia, em 2022, esteve 4 vezes no continente africano. O presidente chinês Xi Jinping também esteve na África algumas vezes e já recebeu muitos presidentes africanos em seu país. A mesma coisa aconteceu em relação ao governo da Rússia. Não apenas Vladimir Putin, mas também o chanceler russo Sergei Lavrov, esteve muitas vezes em interlocução com líderes africanos a fim de identificar oportunidades. Lembro que 2018, a reunião anual do Afreximbank (o banco de importação e exportação da África) aconteceu em Moscou, numa demonstração clara do interesse russo na África.
A Índia também operou no mesmo sentido e o primeiro-ministro Narendra Modi tem reiterado o interesse da India em manter o diálogo constante com governos africanos. Isso faz com que estes grandes países estejam muito bem-posicionados.
Ainda há espaço para o Brasil na África?
A minha expectativa é positiva. É fato que o Brasil não consegue atender as necessidades e demandas dos países africanos principalmente por não ter linhas de financiamento em abundância como os outros países mencionados têm. O Brasil não tem uma política muito definida de incentivos e investimentos no exterior, realidade que já existe desde muito tempo.
Mas há um detalhe importante e que deve ser considerado a favor do Brasil. Os africanos de um modo geral têm um carinho muito grande e uma generosa memória afetiva com o Brasil, principalmente pelas boas experiências de instituições públicas e privadas implementadas em muitos países nos últimos anos. Esse ativo brasileiro, eu chamo de tropicalização de experiências, que certamente devem respeitar as peculiaridades e singularidades de cada país.
Quais setores podem ser de interesse do Brasil?
Eu costumo dizer que, olhando para o Brasil de 30 ou 40 anos atrás, nós vemos algumas realidades bem atuais em alguns ambientes africanos. E muitas experiências que o Brasil já viveu podem, de alguma maneira, ser utilizadas e implementadas em diversos contextos dos nossos irmãos africanos.
Há uma necessidade muito grande de resolver problemas de infraestrutura como saneamento básico, transporte rodoviário e ferroviário e recursos hídricos. O Brasil pode ajudar muitas nações africanas a sair de alguns constrangimentos nessas áreas. Também temos o contexto da produção e distribuição de energias. Há uma necessidade urgente de algumas nações de resolver o problema dos apagões, com a falta de energia. Surge uma imensa oportunidade também para as energias renováveis, principalmente pelo lançamento de editais de concessões para implantação de parques de produção de energia solar ou eólica, que estão prosperando em diversos países africanos, que pode ser muito bom para empresas brasileiras que já experimentaram isso mais recentemente.
Outro setor muito valioso é a agricultura, cuja necessidade na África é urgente. E aqui me refiro à de produção de alimentos em quantidades superlativas tal qual o Brasil fez e faz atualmente. E o Brasil pode, reservada às necessidades de cada país e suas peculiaridades, transferir tecnologia e produzir nesses países.
Se o Brasil saiu de sua condição de um importador de alimentos para se tornar um dos grandes produtores mundiais, é possível que isso também aconteça do outro lado do Atlântico, uma vez que as condições climáticas e geográficas são bastante favoráveis e muito parecidas com as do Brasil.
Quais os maiores obstáculos para o Brasil na África hoje?
O Brasil precisa conhecer mais a África. Este talvez seja o maior obstáculo que nós temos pela frente. A imagem que o Brasil tem da África é, muitas vezes, uma figura caricaturada e preconceituosa. Os brasileiros conhecem muito pouco daquele continente e muitas vezes, olham para a África como se fosse um ambiente único e homogêneo, não respeitando a ideia clara e objetiva de que as 54 nações são individuais, cada uma com sua realidade. Às vezes possuem algumas semelhanças, mas cada uma precisa ser encarada e vista singularmente.
Quais erros do passado o Brasil não pode cometer desta vez?
Nos últimos anos eu tenho viajado muito para diversos ambientes africanos. Dos 54 países, já tive a oportunidade de visitar 45 nações. Isso me passa a certeza, ao olhar para cada situação, geografia, costumes e peculiaridades, de que o continente africano é um lugar próspero. As oportunidades que surgem em cidades como Nairobi, Johannesburg, Casablanca, Kinshasa, Acra e Lusaka, para citar algumas, são oportunidades que precisam ser valorizadas.
O Brasil não pode ficar de fora desse jogo. Por outro lado, o Brasil não pode perder a chance de se deixar conhecer mais e mais no continente africano. Neste sentido, é imperativo que o governo federal e também os governos subnacionais em parceria com as empresas implementem uma urgente agenda de "invasão" de produtos e serviços brasileiros na África.
O continente africano não pode ser observado como um lugar de esmolas, de caridade ou de favores. Ao contrário, a África é um ambiente onde grandes negócios acontecem, por isso muitas multinacionais de diversos lugares do planeta já operam na África.
A riqueza do continente não reside apenas nos seus recursos naturais que sempre existiram, mas também no seu tamanho e sua projeção, na sua população de quase 1 bilhão e meio de habitantes, no aumento do consumo de sua classe média em grande expansão. Além disso, os países evoluíram na segurança jurídica. Tudo isso faz com que o Brasil precise olhar para a África com respeito e vontade de fazer bons negócios no continente.
Qual o objetivo da próxima edição do Fórum Brasil África?
O Instituto Brasil África, desde sua criação, tem como objetivo fazer conexões entre Brasil e o continente africano. As conexões envolvem governos, o setor privado e a sociedade civil. E uma das ferramentas que o IBRAF utiliza para fazer as conexões é justamente o Fórum Brasil África, que chega à sua 11ª edição consolidado como uma conferência global e plataforma de negócios e oportunidades, com a participação de Chefes de Estado, representantes de governos, ONGs, instituições financeiras e de fomento e do setor privado.
Nos últimos anos o evento ganhou uma dimensão maior e tem contado com a participação de representantes de governos e de organizações privadas de diversas partes do mundo. O Fórum Brasil África 2023 irá discutir um tema muito importante que é o comércio internacional, uma temática que envolve muitas áreas de discussão: agricultura, logística, PPP, energia renovável, financiamento, turismo, dentre outros assuntos que serão discutidos nos dias 31 de outubro e 01 de novembro, em São Paulo.
Nós temos a convicção de que os líderes que estarão presentes no evento apresentarão boas iniciativas e boas ideias que podem certamente se materializar em oportunidades de parceria e cooperação.
Qual a mensagem que o evento quer mandar para essa nova etapa da relação?
O presidente Lula apontou em diversas ocasiões e, mais recentemente quando esteve em visita oficial a Angola, que eu tive a oportunidade de acompanhar, que o Brasil retomou sua atenção com a África. Isso é muito bom.
E neste contexto, o Fórum Brasil África 2023 pela sua dimensão, rica programação e a excelência dos participantes certamente é uma grande plataforma que pode ser utilizada para reafirmar que o Brasil inicia uma nova etapa e se reposiciona como um parceiro importante da África e desejando que assim continue a ser visto.
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