Jamil Chade

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Governo Lula quer Putin em cúpula do G20 no Rio, diz Amorim

O Brasil quer a presença de Vladimir Putin para a cúpula do G20, que ocorre no segundo semestre de 2024. A afirmação é do assessor especial da presidência, embaixador Celso Amorim. Em entrevista exclusiva ao UOL, um dos principais artífices da nova inserção brasileira insiste que, sem a Rússia, a conferência do G20 seria "incompleta".

Como presidente do bloco, o Brasil receberá todos os líderes em uma cúpula no final do próximo ano. Mas Putin foi denunciado pelo TPI (Tribunal Penal Internacional) por crimes na Ucrânia e, pelas regras da corte, sua presença no território de um país-membro do Tratado de Roma exigiria que o Brasil prendesse o russo e o entregasse para Haia.

Amorim questiona o fato de que "outros criminosos" não foram punidos pela corte e insiste que não há como ignorar a Rússia. O diplomata alerta que não se pode premiar Putin pela invasão da Ucrânia. Mas defende que se busque uma solução para a crise.

"Temos de levar em consideração o sofrimento dos ucranianos e não podemos premiar a invasão, que é uma quebra da Carta da ONU", disse. "Mas também teremos de ser realistas e ver o que é possível", disse.

Em uma entrevista sobre o primeiro ano da política externa de Lula (PT), o diplomata afirma a posição do Brasil em alguns dos principais temas internacionais. Segundo ele:

Não tinha cabimento Lula ir à posse do presidente argentino Javier Milei. Mas a relação entre Estados continua e o Brasil apoiará pedidos de empréstimos internacionais.

Eventual vitória de Donald Trump provavelmente criaria problemas na região, mas a esperança é de que o norte-americano seja mais realista em um eventual novo governo.

Sobre a Venezuela, Amorim afirmou que transformar uma disputa de fronteiras num tema de discussão popular, como fez Nicolás Maduro, é muito perigoso. Isso faz lembrar a Europa dos anos 20 e 30.

É uma ilusão de que Israel vai acabar com o Hamas.

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Veja a seguir os principais trechos da entrevista:

Jamil Chade: O governo Lula assumiu um país que era um pária internacional ao final de 2022. Como o senhor avalia a inserção do Brasil, um ano depois?

Amorim: As coisas são mais que evidentes. O presidente Lula é convidado para todas as reuniões, inclusive para grupos do qual o Brasil não faz parte, como G7, é convidado a ser principal palestrantes em outros. A participação do Brasil é bem-vista e frequentemente requisitada para situações de conflitos. A mais obvia é da Rússia com Ucrânia e, agora mais recentemente, entre Venezuela e Guiana.

No caso do Oriente Médio, onde o Brasil pode ter um papel, o momento não se presta a isso. Até por conta da presença de muitos brasileiros retidos em Gaza, no fundo há uma situação, não estou dizendo que seja voluntária, um pouco como se fosse uma chantagem. Não podemos falar tudo o que pensamos sob pena de colocar em risco os nossos brasileiros e seus parentes. Nesse caso, temos de tomar uma atitude um pouco mais discreta.

Mesmo assim, o ministro Mauro Vieira apresentou uma proposta de resolução que foi aceita por todos. E apenas recusada pelo EUA, no Conselho de Segurança [da ONU]. Aquilo abriu as portas para outras. E, apesar de haver muitas dificuldades, acho que estamos caminhando para uma situação na qual é inevitável que haja uma resolução de cessar-fogo.

O que ocorre na Palestina é de uma dramaticidade fora do comum. O número de mortes de crianças eu acho que não tem paralelo na história. Talvez na Segunda Guerra Mundial, nos bombardeios de Dresden ou Hiroshima. Mas num ataque frontal nunca houve nada parecido na História.

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O Brasil está reconstruindo a América do Sul. É muito interessante que, no caso da Venezuela e Guiana, o apelo que foi feito foi atendido e o resultado é positivo. Não tenho ilusões. Não estou dizendo que isso significa uma solução do problema. Mas, certas questões, se você consegue fazer com que elas não sejam explosivas naquele momento, já é uma vitória.

Eu dizia que, se simplesmente se marcasse uma nova reunião, já era uma vitória. Não fomos muito além disso, com uma declaração de princípios. O mais importante é a renúncia do uso da força e da ameaça por ambos os lados. O Brasil tem demonstrado não apenas que pode estar presente. Mas que pode ajudar.

Chade: Tanto no que se refere ao caso ucraniano como em Gaza, o Conselho de Segurança viveu um impasse. Que o órgão já não representa o mundo de hoje, todos já sabemos. Mas o que fazer agora? Qual é a proposta que o Brasil quer encaminhar para uma reforma?

Amorim: A consciência de que uma reforma é necessária já é algo muito positivo. Essa consciência é hoje bem ampla. Eu trabalhei muitos anos com isso. Junto com o presidente da Assembleia Geral, eu escrevi junto com ele o que poderia ser uma reforma que aproximasse um pouco do que é a ONU hoje. Para que uma reforma ganhe institucionalidade, ela precisa passar pela ONU.

Agora, eu acho que hoje, como em todas as outras épocas das reformas do sistema internacional, ela precisa vir de fora para dentro. Nosso papel no G20, portanto, vai ser importante. Não creio que poderemos ter uma reforma no G20. China vê de um jeito, Japão de outro, os EUA ainda de outra forma. Portanto, não é o lugar adequado para que haja a reforma. Mas para que ocorra um fortalecimento da ideia da reforma. Eu acho que isso ainda vai levar um tempo.

Chade: Ainda nos primeiros meses de governo, Lula foi aos EUA. O sr. acha que Joe Biden frustrou a ambição da relação que se propunha?

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Amorim: Não. Não diria que frustrou. Os americanos continuam defendendo valores semelhantes aos nossos, como a democracia. Claro que há um certo grau de realpolitik, mas o fato de os dois presidentes terem assinado uma declaração sobre trabalho decente é muito positivo. Mostra uma área de convergência no aspecto social.

Agora, na visão geopolítica, muitas vezes divergimos. Ainda que muitas vezes tenhamos trabalhado juntos, tanto na Venezuela, como na Ucrânia. Isso não quer dizer exatamente na mesma direção. Mas conversando.

Aí há uma visão diferente. O Brasil tem uma visão geopolítica mais baseada no equilíbrio. Não podemos ter e não queremos ter pretensão de ser uma potência hegemônica. Nos EUA, essa ideia persiste.

A ideia de impor seus valores pela força, se necessário, é também uma ideia que está presente e que nós não concordamos. Mas isso não nos impede que possamos trocar ideias.

Chade: Uma vitória de Donald Trump seria um abalo na estabilidade regional? Ou nessa construção da relação entre Brasil e EUA?

Amorim: Temos de lidar com realidade. Acho que uma vitória do Trump provavelmente nos criaria, tendo em vista o que foi a vitória do Milei na Argentina, problemas na região. Agora, é possível que um Trump 2 venha modificado. Que tenha a noção mais clara de que não vai impor uma mudança pela força, que não vai inventar um novo Guaidó na Venezuela.

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E pode ser que, em outros campos, ele se revele mais realista. Na questão da Rússia, talvez ele seja até mais tranquilo. É difícil dizer.

Até mesmo por conta da política interna brasileira, não desejo de jeito nenhum que ocorra isso. Mas, se ocorrer, teremos de lidar com isso.

Chade: O sr. citou o caso da Venezuela. Ficou estabelecido na semana passada que a próxima reunião nessa tentativa de evitar uma escala ocorrerá no Brasil. O que o governo pensa em fazer nesses três meses? Haverá um mecanismo de acompanhamento?

Amorim: Isso ainda está sendo desenvolvido. Não fomos nós quem propusemos que fosse no Brasil. Houve pedidos insistentes que fosse no Brasil, e nós aceitamos.

Houve um momento da negociação que uma das partes estava criando grandes empecilhos, que eu disse: então tira o Brasil disso. E rapidamente houve um acordo. Para você ver como isso conta.

O Brasil não pode se negar. O país participa de conversas sobre Ucrânia, eventualmente sobre Oriente Médio, não pode deixar de ter uma participação num debate no nosso continente. É importante ver que isso não está sendo discutido na OEA. Mas no âmbito da América Latina e Caribe. O Brasil busca uma aproximação com o Caribe e vai até para a reunião do bloco, que ocorre em fevereiro justamente na Guiana.

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Chade: Era já algo marcado antes da tensão?

Amorim: Sim. Ela simplesmente não será desmarcada.

Chade: Como foi a conversa com Maduro, antes da votação sobre o território na Guiana?

Amorim: O presidente Lula me mandou para Caracas alguns dias antes do referendo para demonstrar o nosso incômodo. Um desses incômodos é o fato de que você transformar num tema de discussão popular uma questão diplomática de fronteira. Isso é muito perigoso. Isso faz lembrar a Europa dos anos 20 e 30. As guerras na região, até recentemente, eram guerras da elite, das Forças Armadas. Das pessoas que traçam os mapas. Não uma guerra do povo. Quando se envolve o povo nessas demandas, o recuo fica mais difícil. E esse é um dos grandes desafios que temos pela frente.

Chade: Maduro surpreendeu ao levar essa questão territorial? Vocês consideravam que a volta do diálogo e a retirada de algumas sanções abriria uma porta de maior estabilidade?

Amorim: São dois processos paralelos. Mas que se dialogam. Há um processo que diz respeito às eleições de 2024 e sanções. Há um segundo processo, que é o da paz e de se evitar que a questão se torne num conflito militar. Mas a sensação que tenho é que podem caminhar de forma paralela e isso parece estar acontecendo.

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Chade: Passando para outro país latino-americano, no caso a Argentina, Lula não foi à posse de Milei. Mas o Brasil considerou como positivo um novo empréstimo internacional ao seu governo. Afinal, qual será a estratégia com o novo governo da Argentina?

Amorim: Temos de desvincular o aspecto pessoal do aspecto de Estado. O presidente foi pessoalmente agredido e maltratado. E isso faz com que seja muito difícil uma troca de beijos e carinhos. Eu acho que não tinha cabimento ele ir.

Por outro lado, as ações de Estado continuarão. A Argentina é um parceiro fundamental do Brasil, seja qual governo que tenha. Claro que preferimos governos com mais afinidades para defender democracia, justiça social.

O Brasil foi instrumental para o convite para que a Argentina fosse aos Brics. Agora, não sei se ela vai querer ir. O Brasil certamente não deixará de apoiar pedidos legítimos de empréstimos para a Argentina e consideramos que esse é legítimo.

Chade: E não há um temor que a Argentina seja um epicentro da extrema-direita na América do Sul, irradiando até mesmo para o Brasil turbulências para a democracia?

Amorim: Isso se liga à pergunta sobre Trump. Na atual configuração, não vejo grande risco disso. Mas tudo muda e não temos certeza. Eu creio que o interesse econômico e cultural da Argentina pode acabar predominando.

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Chade: Então uma aliança entre Milei e Trump preocupa?

Amorim: Olha, espero que isso não ocorra.

Chade: O sr. citou no começo da conversa a situação em Gaza. Israel vem ignorando todas as resoluções da ONU. Como o sr. avalia esse comportamento?

Amorim: Lamentável. O Brasil participou de vários processos, como Anápolis. Estive com Sharon, com outros conservadores. Mas que entendiam que a segurança de Israel não dependeria de domínio militar. Mas de algum grau de entendimento com a Autoridade Palestina. Lula foi o primeiro presidente a visitar Israel.

Agora, eu nunca vi nada parecido ao que está ocorrendo agora. Vimos, sim, progressivamente a construção de um verdadeiro apartheid, inclusive na Cisjordânia. O que vemos hoje e lamentamos é que é uma ilusão de que ele vai acabar com o Hamas. Para cada pessoa do Hamas que matar, aparecem cinco novos adeptos do grupo. Sobretudo com a morte de crianças. Eu nunca vi nada parecido. Você ter esse número absurdo de mortos, é inaceitável.

Chade: O senhor chegou a falar de que a palavra genocídio veio à mente diante da situação em Gaza.

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Amorim: Não quero entrar no debate técnico. Sei que genocídio tem certas definições. Mas o sentimento é parecido àquele que é provocado por um genocídio.

Chade: Do lado do Hamas, os atos de 7 de outubro mostraram um grau absurdo de violência. O que fazer então com o Hamas?

Amorim: Nós classificamos como ato terrorista.

Chade: Mas como lidar com um grupo que atua desta forma?

Amorim: Melhorando a relação com a Autoridade Palestina. O que mais fortalece o Hamas é a desmoralização da Autoridade Palestina. Dar condições para que a autoridade dele se fortaleça. Agora, quando ouvimos dizer que a solução para os palestinos de Gaza é emigrarem, isso não sei se é limpeza étnica ou genocídio. Qualquer um dos dois é péssimo.

Chade: O Brasil poderia desempenhar um papel no diálogo entre as diferentes forças palestinas?

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Amorim: Chegamos a pensar que isso seria possível. Se o Hamas participasse do processo de paz, de alguma forma, indiretamente ele estaria reconhecendo a existência de Israel. Isso é o que queríamos. O Hamas foi eleito e tem muita força política. Hoje, provavelmente, teria uma votação ainda maior do que teve em 2006.

Chade: Falando em negociações de paz, o senhor acha que existe uma chance maior de um diálogo neste momento para lidar com a guerra entre Ucrânia e Rússia, diante do desgaste cada vez maior do apoio do Ocidente ao governo de Kiev?

Amorim: Acho que a negociação não virá logo. As lideranças dos dois lados são muito impregnadas com o espirito de vitória. O que acho é que teremos um armistício, sem uma definição jurídica formal de que terra fica com quem. Mas com base na situação no terreno, talvez com algumas correções.

Temos de levar em consideração o sofrimento dos ucranianos e não podemos premiar a invasão, que é uma quebra da Carta da ONU. Mas também teremos de ser realistas e ver o que é possível. O plano de paz do Zelensky não tem futuro. Não é avaliar se ele é justo ou não. É o terreno que não permite que ele ocorra.

Chade: Premiar invasão na Ucrânia, depois fica difícil justificar ação contra uma invasão na Venezuela?

Amorim: Hoje, a União Europeia já discute participação da Ucrânia no bloco. Isso é algo que a Rússia não toleraria há três anos. Hoje, ela talvez seja obrigada a aceitar. Eu já ouço dizer que, em matéria de território, algo seja perdido. Mas por outro lado haja maior garantia de segurança para a Ucrânia.

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Chade: O Brasil vai aceitar a presença de Putin no G20 em 2024?

Amorim: Nós queremos que Putin venha. Uma conferência do G20 sem a Rússia é uma conferência incompleta. Se formos falar de temas como reforma da governança global, como vai ignorar a Rússia? A Rússia é um ator necessário. Sua ausência vai contra o interesse do G20. O TPI foi criado na época em que eu era embaixador na ONU e foi visto como um progresso. Mas o fato é que as grandes potências ficaram de fora. Só vale para os outros? Ou para um país declarado como inimigo pelo Ocidente. Onde estão os outros que cometeram os crimes de guerra?

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