Jamil Chade

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Comissão Europeia cede a exigências do Brasil; Macron confronta Mercosul

Uma mensagem de texto enviado pelo telefone no fim de semana por Emmanuel Macron, presidente da França, para a chefe da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, precipitou uma crise na relação entre o Mercosul e a UE. E, mais especificamente, com o Brasil. Os dois líderes europeus se reúnem nesta quinta-feira e, mesmo longe dos salões em Bruxelas, o Brasil estará no centro da agenda.

No SMS, o francês avisou que não aceitará o acordo de livre comércio entre os dois blocos, sob a alegação de que a suposta invasão de alimentos exportados pela América do Sul colocaria em risco seus agricultores.

Mas a correria de Macron por barrar o entendimento não ocorria por acaso no fim de semana. Dias antes, negociadores do Mercosul e da Comissão Europeia estiveram reunidos e, para a surpresa do Brasil, todas as exigências apresentadas pelo Itamaraty no setor de licitações públicas - que movimenta em torno de US$ 114 bilhões - e que vinham sendo rejeitadas pela Europa foram acatadas pelo braço executivo do bloco.

Durante as conversas, o Brasil conseguiu que a Europa aceitasse algumas das demandas centrais da proposta do governo Lula:

  • Excluir o SUS de qualquer abertura de mercados para a participação dos europeus em licitações públicas. A meta do Brasil, assim, é a de preservar o mercado bilionário para, assim, tentar fortalecer a indústria farmacêutica nacional.
  • A criação de uma margem de preferências para empresas nacionais em licitações públicas, atendendo aos objetivos da nova política industrial do governo. De acordo com negociadores, a Comissão Europeia topou o entendimento, sem impor condicionamentos ou limites.

Macron, então, se apressou em tentar bloquear o processo, principalmente diante de sua situação doméstica.

Diplomatas apontam que o argumento do francês sobre o risco para a agricultura sequer condiz com a realidade. Os estudos realizados por ambos os lados do processo apontam que, caso o acordo que já é negociado há 25 anos entre em vigor, o volume extra de exportação brasileira prevista não representaria a dimensão do abalo no mercado europeu como alegam os franceses.

Impacto modesto para exportação brasileira

De fato, as cotas oferecidas pela União Europeia para as exportações agrícolas do Brasil já foram preenchidas em grande parte, o que significa que o acordo entre a UE e o Mercosul corre o risco de ter um impacto pequeno para alguns dos principais setores da exportação nacional, segundo documento do governo Lula obtido com exclusividade pelo UOL.

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"As cotas ofertadas pela UE ao Mercosul ou são insuficientes, ou não representam grande impacto para as exportações brasileiras. Ademais, são as barreiras não-tarifárias que mais restringem o comércio bilateral", diz o documento.

Nos últimos cinco anos, por exemplo, o Brasil sozinho exportou para a UE mais da metade da cota prevista para carne bovina no último ano do cronograma de redução de tarifas oferecido por Bruxelas. Em 2018, o volume exportado chegou a 70% da cota total do Mercosul, considerando a cota de 99 mil toneladas. O Brasil, em 2022, foi responsável por 25% da carne bovina importada pela UE. O volume poderia ser maior, se não houvesse barreiras não-tarifárias. A cota oferecida cobre apenas 70% do volume exportado pelos quatro países do Mercosul.

Para o arroz, a cota disponível para todo o Mercosul é menor do que o volume exportado apenas pelo Brasil. A cota destinada ao arroz corresponde a menos de 2,5% do total importado pela UE em 2022, enquanto o volume importado do Mercosul representa quase 14% das importações do bloco. A cota do açúcar para o Mercosul corresponde a pouco mais de 8% das importações totais europeias em 2022. A cota ofertada cobre cerca de 20% das exportações do Mercosul para a UE..

No caso do etanol, o Brasil sozinho exportou, em 2022, quase 60% da cota prevista para o período final do cronograma de liberalização do mercado europeu. A cota inicial cobre apenas 24,4% das exportações do Mercosul.

Queijo francês e mil tratores em Bruxelas

Além disso, uma parcela tradicional dos produtores rurais franceses também ganharia novos mercados. Segundo o acordo, os exportadores de queijo - principalmente da França - terão maior acesso ao mercado sul-americano, inclusive ameaçando a indústria doméstica.

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Mas Macron passou a se apresentar como o defensor do campo europeu, às vésperas de um protesto de agricultores pela França que ameaça desabastecer as grandes cidades e até criar dificuldades para a chegada de líderes à cúpula, em Bruxelas.

O gesto de Macron não ocorre por acaso. Para diplomatas, trata-se de uma tentativa de usar o Brasil como escudo diante de um clima político tenso para o presidente francês.

Sob pressão para as eleições europeias em meados do ano, sob o ataque da extrema direita e buscando uma estabilização, Macron cria um "inimigo" externo para fazer convergir as forças políticas e mostrar que está defendendo um setor estratégico.

Como descrito por um experiente diplomata do Itamaraty, o uso do Brasil e do Mercosul como colete salva vidas é a resposta "fácil" que Macron pode apresentar a um segmento em pé de guerra contra seu governo.

Nesta quinta-feira, Macron testou sua estratégia, durante a cúpula dos líderes da UE. Nas ruas, mil tratores chamaram a atenção dos líderes reunidos em Bruxelas.

O foco do francês era a presidente da Comissão Europeia que, em meados do ano, também busca sua reeleição no cargo. Os dois mantiveram uma reunião de 30 minutos nesta manhã.

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Ao final do encontro, Macron deixou claro que vai continuar a se opor ao acordo com o Mercosul, ainda que admita que não tem o poder de veto. Espanha e Alemanha declararam que querem que o processo continue.

O trunfo de Macron para barrar o Mercosul, porém, é político. Há cinco anos, a alemã Van der Leyen apenas foi eleita graças a um acordo entre a então chanceler Angela Merkel e Macron. Agora, ela sabe que precisa uma vez mais do acordo de Paris para se manter no poder.

Nessa negociação, diplomatas temem que ela tenha de ceder e sacrificar o acordo com o Mercosul.

Um elemento ainda de mistério é como ela irá combinar essa pressão francesa, sem deslegitimar as posições de países como Espanha, Portugal e Alemanha, defensores do acordo com o Mercosul. Mas mesmo Paris admite que é minoria.

Quem negocia acordos comerciais é a Comissão Europeia. Mas, para que um acordo possa existir, a proposta precisa ser votado pelo Conselho Europeu. Dos 27 membros, o acordo precisa de 14 votos para ser aprovado. Um tratado ainda precisa passar pelo Parlamento Europeu.

Mas os ministros de Macron tentam convencer a opinião pública que não haverá um futuro para o pacto enquanto não houver o sinal verde de Paris.

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França veta entrada de alimentos com pesticida

Sem a garantia de conseguir parar o acordo, o primeiro-ministro da França, Gabriel Attal, anunciou medidas para tentar atender aos agricultores, aumentando subsídios em 150 milhões de euros. Mas também aproveitou para insistir que "houve progresso" na defesa da posição francesa dentro do bloco europeu, em relação ao veto ao acordo com o Mercosul.

Uma das medidas adotadas é a proibição da entrada de alimentos com certos pesticidas, mesmo enquanto a Europa não chegou a um acordo ainda sobre o veto a esses produtos.

O primeiro foco é o tiaclopride. No Brasil, o produto é autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), principalmente no setor do algodão, citros, soja, cana-de-açúcar, feijão frutas e vegetais.

"Vamos proteger melhor nosso país", disse. "Não é questão de aceitar o acordo com o Mercosul. Isso está claro", afirmou. Além da cláusula contra o pesticida, a França anuncia a ideia da criação de uma "força europeia" para controlar a fraude na importação.

Para ele, essa medida faz parte de uma estratégia de "soberania alimentar", acusada pelos países emergentes como "protecionismo".

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Marc Fesneau, ministro da Agricultura, apontou ainda que outros pesticidas poderão ser vetados, ampliando a lista de produtos que poderiam ser afetados para entrar no mercado francês.

Nem todos, porém, estão de acordo. O MEDEF, a poderosa confederação patronal da França, deixou claro que quer um acordo com o Mercosul para permitir que a indústria francesa possa exportar.

Fim de lua de mel com Lula?

Negociadores admitiram ao UOL que, já em dezembro, o comportamento do francês tinha causado um mal-estar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O brasileiro viu como uma espécie de "traição" a forma pela qual a França defendeu que exigências ambientais fossem impostas ao Brasil para que um acordo fosse fechado, minando até mesmo a soberania do país.

Observadores apontam que, se ficar evidenciado que Macron usará o Mercosul como forma de se salvar politicamente na Europa, o que ainda existia de lua de mel entre ele e Lula pode estar ameaçado.

Durante os anos de Jair Bolsonaro, Macron foi considerado como uma peça chave no exterior para abalar a legitimidade do ex-presidente brasileiro. O francês não poupou críticas contra o então chefe do executivo, recebeu o cacique Raoni e abriu seu palácio até mesmo para receber o então candidato Lula.

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Em 2022, questionado pelo UOL sobre como estavam as relações entre a França e o Brasil de Bolsonaro, Macron permaneceu em silêncio por alguns segundos e apenas respondeu: a relação "já foi melhor".

Extrema direita tenta mobilizar votos de agricultores insatisfeitos com Mercosul

Mas, para o Brasil, garantir que a eleição na Europa não se transforme numa plataforma para a extrema direita é também estratégico. Parte da cólera dos agricultores está sendo instrumentalizada pelos partidos populistas para ampliar suas influências e, eventualmente, transformar essa ira em apoio aos candidatos extremistas.

O próprio Macron usou o argumento do temor da extrema direita para justificar seu apoio aos agricultores.

Macron alegou que a Europa vive uma crise agrícola há meses, com o impacto da guerra na Ucrânia. Segundo ele, o risco é de que a ausência de uma resposta gere uma situação na qual grupos "extremistas" ganhem espaço na política. Sua declaração foi interpretada como um alerta sobre como a extrema direita poderá usar a crise para ampliar sua base de votos para as próximas eleições.

"Temos levar em consideração as questões geopolíticas, e colocar no coração do bloco a soberania alimentar", defendeu.

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Com o risco de uma vitória de Donald Trump nos EUA e a presença de Javier Milei na Argentina, tampouco interessa ao governo Lula o fortalecimento da extrema direita global a criação de eixos de poder.

Mas, para a política externa de Lula, anunciar um acordo comercial com a Europa, depois de um quarto de século de negociações, também seria transformado em um instrumento de publicidade de que o Brasil estaria reconquistando seu lugar no mundo.

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