Brasil ignora pedido da ONU para encerrar processo contra jornalista
O governo brasileiro ignorou os pedidos de relatoras da ONU para que o processo contra a jornalista Schirlei Alves fosse retirado.
Ela foi condenada em primeira instância a um ano de prisão em regime aberto e R$ 400 mil de multa pela reportagem, publicada em 2020 no Intercept, que denunciou as humilhações sofridas no tribunal pela modelo e influenciadora Mariana Ferrer.
Ao depor no processo em que o empresário André de Camargo Aranha foi acusado de estuprá-la — e em que acabou absolvido —, Mariana chorou e implorou por respeito ao ser desqualificada pelo advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho. O crime teria acontecido em dezembro de 2018. Mariana, então com 21 anos, disse ter sido dopada e violentada no local.
Embora o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tenha advertido o juiz do caso Rudson Marcos, por ter permitido os "excessos de comportamento do advogado", a jornalista que denunciou a conduta e acabou condenada por difamação, em processos movidos pelo juiz e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira. Ela recorre da decisão.
Na semana passada, o UOL revelou com exclusividade uma carta enviada por relatoras da ONU ao Brasil no início de fevereiro, denunciando a situação da jornalista e pedindo que o processo contra ela fosse anulado. Entre as várias cobranças, as relatorias pediam medidas de proteção a mulheres jornalistas que cobrem casos de crimes sexuais.
"Desejamos expressar nossa preocupação com o processo e a condenação da Sra. Alves sob a acusação de difamação criminosa em relação ao seu trabalho como jornalista investigativa e defensora dos direitos humanos", escreveram. "Tal ação parece ser uma tentativa de intimidá-la e silenciá-la por denunciar, criticar e expor a má conduta do Judiciário."
Ao examinar o caso, as relatoras apontam que fatos revelados pela jornalista "não parecem procurar difamar o promotor ou o juiz".
"Sua reportagem forneceu informações públicas valiosas que contribuíram para um importante debate sobre os direitos das mulheres e os direitos das vítimas de violência sexual, levando à aprovação da Lei 14.245/2021", disseram. "Em nossa opinião, o interesse público da reportagem supera o interesse do Estado em processar por difamação neste caso e, respeitosamente, pedimos ao governo de Vossa Excelência que retire as acusações contra a Sra. Alves", completaram.
Resposta protocolar
A resposta do governo viria apenas no dia 29 de março e, apesar de contar com 18 páginas, o texto não trata do pedido central das relatoras da ONU, de anular o processo.
Com o tema ignorado, o governo se limitou a dizer que o estado brasileiro "não criminaliza as atividades" dos jornalistas. O texto insistiu que há uma proteção à liberdade de expressão e que tais provisões constitucionais não são vazias. "Elas são acompanhadas por mecanismos e institutos que tem como objetivo assegurar a liberdade de pensamento e de ação dos jornalistas", disse.
O governo ainda destacou como criou canais, em 2023, para que jornalistas denunciem ataques e fez uma lista de todas as medidas estabelecidas para proteger os profissionais da imprensa e lidar com a violência contra a mulher.
No caso especifico de Schirlei Alves, a carta se limitou a relatar o processo completo, desde as denuncias por difamação. O documento explica que "ficou decidido que o exercício da liberdade de expressão não pode exceder o direito à honra da vítima em razão da divulgação de notícias falsas ou informações fora de contexto".
Num outro trecho, o governo volta a insistir que "devemos lembrar que o direito à liberdade de expressão, assim como todos os direitos fundamentais, não é absoluto".
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receber"Em uma sociedade plural e democrática, coexistem vários direitos e interesses, que devem ser ponderados para alcançar o bem-estar geral da comunidade, sem priorizar alguns em detrimento de outros. Assim, o direito à liberdade de expressão, inerente à atividade jornalística, precisa respeitar os limites do direito à honra e à dignidade dos sujeitos sobre os quais as notícias são publicadas", avalia.
Num terceiro momento, o governo justifica a decisão contra a jornalista. "Não há dúvida de que a liberdade de expressão tem configuração destacada e preferencial no Estado democrático brasileiro", disse. "Entretanto, conforme expressamente declarado nas decisões judiciais contra a Sra. Alves, "o exercício desse direito não pode ultrapassar o direito à honra da vítima em razão da divulgação de notícias falsas ou fora do contexto da realidade".
Na carta, o Brasil ainda explica às relatoras o fato de que medidas disciplinares tenham sido adotadas contra o juiz do caso.
Ao encerrar o texto, o governo afirma que, ""considerando as informações ora prestadas, o Brasil espera que todos os esclarecimentos solicitados sejam atendidos". A carta ainda insiste no "total compromisso com o direito à liberdade de opinião e expressão, a proteção da nobre atividade jornalística e o enfrentamento da violência contra mulheres e meninas.
"Estas são as informações julgadas necessárias no âmbito do presente assunto, permanecendo o Estado do Brasil à disposição para quaisquer outros esclarecimentos que se fizerem necessários", conclui a resposta do país.
A carta das relatoras, do início de fevereiro, insistiu sobre o fato de que o trabalho de Schirlei Alves levou a uma "reforma judiciária significativa", com a aprovação de uma lei que protege vítimas e testemunhas de crimes sexuais no contexto de julgamentos — a Lei Mariana Ferrer, sancionada em novembro de 2021.
O texto é assinado por:
- Irene Khan, relatora Especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão;
- Mary Lawlor, relatora Especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos;
- Reem Alsalem, relatora Especial sobre a violência contra mulheres e meninas, suas causas e consequências;
- Dorothy Estrada-Tanck, presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre discriminação contra mulheres e meninas.
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