ONU pede que Brasil retire acusações contra jornalista do caso Mari Ferrer
Uma carta enviada por relatoras da ONU ao Estado brasileiro pede medidas de proteção a mulheres jornalistas que cobrem casos de crimes sexuais e denuncia a condenação da repórter Schirlei Alves. Para elas, os processos de difamação contra a jornalista precisam ser anulados.
Schirlei Alves foi condenada em primeira instância a um ano de prisão em regime aberto e R$ 400 mil de multa pela reportagem, publicada em 2020 no Intercept, que denunciou as humilhações sofridas no tribunal pela modelo e influenciadora Mariana Ferrer.
Ao depor no processo em que o empresário André de Camargo Aranha foi acusado de estuprá-la —e em que acabou absolvido —, Mariana chorou e implorou por respeito ao ser desqualificada pelo advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho. O crime teria acontecido em dezembro de 2018, na boate Café de la Musique, em Florianópolis. Mariana, então com 21 anos, disse ter sido dopada e violentada no local.
Embora o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tenha advertido o juiz do caso, Rudson Marcos, por ter permitido os "excessos de comportamento do advogado", a jornalista que denunciou a conduta e acabou condenada por difamação, em processos movidos pelo juiz e pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira. Ela recorre da decisão.
A carta que pede a intervenção do governo brasileiro é assinada por:
- rene Khan, relatora Especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão;
- Mary Lawlor, relatora Especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos;
- Reem Alsalem, relatora Especial sobre a violência contra mulheres e meninas, suas causas e consequências;
- Dorothy Estrada-Tanck, presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre discriminação contra mulheres e meninas.
Segundo elas, o trabalho de Schirlei Alves levou a uma "reforma judiciária significativa", com a aprovação de uma lei que protege vítimas e testemunhas de crimes sexuais no contexto de julgamentos — a Lei Mariana Ferrer, sancionada em novembro de 2021.
"Desejamos expressar nossa preocupação com o processo e a condenação da Sra. Alves sob a acusação de difamação criminosa em relação ao seu trabalho como jornalista investigativa e defensora dos direitos humanos", escreveram. "Tal ação parece ser uma tentativa de intimidá-la e silenciá-la por denunciar, criticar e expor a má conduta do judiciário."
Ao examinar o caso, as relatoras apontam que fatos revelados pela jornalista "não parecem procurar difamar o promotor ou o juiz, especialmente devido à sua prontidão em esclarecer o texto em dezembro de 2020, seguindo uma ordem judicial".
Sua reportagem forneceu informações públicas valiosas que contribuíram para um importante debate sobre os direitos das mulheres e os direitos das vítimas de violência sexual, levando à aprovação da Lei 14.245/2021.
Em nossa opinião, o interesse público da reportagem supera o interesse do Estado em processar por difamação neste caso e, respeitosamente, pedimos ao governo de Vossa Excelência que retire as acusações contra a Sra. Alves.
Trecho da carta enviada por relatoras da ONU ao Brasil
Procurada pelo UOL, a repórter afirmou estar segura do seu trabalho e da sua responsabilidade social, enquanto jornalista. Ela lembrou que, além da Lei Mariana Ferrer, a denúncia motivou a aprovação, pelo CNJ, do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
Schirlei Alves disse ainda que a carta da ONU é resultado da articulação de organizações que defendem os direitos humanos e a liberdade de imprensa, e que já se manifestaram publicamente em apoio à jornalista. "Essa mobilização foi tão grande que demonstrou o impacto e a gravidade de uma sentença como essa no jornalismo brasileiro", afirmou.
Estou muito feliz em saber que os mecanismos nacionais e internacionais de proteção aos jornalistas estão atuando em minha defesa, que estão ao meu lado. E estou muito esperançosa de que essa decisão injusta seja revertida ao longo do processo.
Schirlei Alves, jornalista
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JAMIL CHADE
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Quero receberDescriminalizar as críticas contra instituições e funcionários do Estado
Além de tratar do caso específico da jornalista, as relatoras apontaram para a obrigação internacional que o país tem.
"Embora a lei internacional permita a restrição do direito à liberdade de expressão para proteger os direitos e a reputação de outros contra a difamação, o artigo 19(3) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos deixa claro que tais restrições devem respeitar escrupulosamente os princípios de legalidade, necessidade e proporcionalidade", disseram.
O uso de difamação criminal para impedir críticas a figuras públicas é contrário a esses princípios e prejudica a liberdade da mídia.
Trecho da carta enviada por relatoras da ONU ao Brasil
Segundo elas, em várias ocasiões as relatorias da ONU pediram uma proibição global das leis de difamação criminal e calúnia que criminalizam a crítica de instituições e funcionários do Estado.
O Comitê de Direitos Humanos também já pediu que os Estados considerassem a descriminalização da difamação, afirmando que as leis criminais devem ser usadas apenas para os casos mais graves e que a prisão nunca é uma penalidade apropriada.
Significado mais amplo
O caso de Schirlei, porém, foi usado ainda pelas relatoras como um sinal de alerta sobre a situação das mulheres jornalistas.
"Estamos particularmente preocupados com o significado mais amplo e as implicações negativas que a perseguição à sra. Alves tem para a liberdade geral de expressão e a liberdade da mídia no Brasil, inter alia, através do efeito inibidor sobre os indivíduos, e especialmente sobre as mulheres, incluindo jornalistas, trabalhadores da mídia e mulheres defensoras dos direitos humanos no exercício de seu dever jornalístico de informar o público", afirmaram.
Lembramos ao governo de Vossa Excelência que o jornalismo livre e independente é essencial para um sistema democrático e para o estado de direito.
Trecho da carta enviada por relatoras da ONU ao Brasil
Na carta, as relatoras ainda cobraram do Estado que;
- forneça informações sobre a base legal e factual para as acusações de difamação apresentadas contra a sra. Schirlei Alves e sua subsequente condenação, e se o interesse público em informar sobre violência e discriminação sexual e baseada em gênero e a conduta de funcionários públicos foi levado em consideração.
- indique quais medidas foram tomadas para garantir que os jornalistas que cobrem casos de má conduta sexual e estupro no Brasil possam operar em um ambiente propício e possam realizar suas reportagens legítimas sem medo de assédio, intimidação, estigmatização ou criminalização de qualquer tipo.
As relatoras deram 60 dias para que o Estado respondesse, o que acabou ocorrendo no dia 29 de março de 2024. Pediram que nesse período, porém, "todas as medidas provisórias necessárias sejam tomadas para interromper as violações alegadas e evitar que elas ocorram novamente e, caso as investigações apoiem ou sugiram que as alegações sejam corretas, para garantir a responsabilização de qualquer pessoa responsável pelas violações alegadas".
O Itamaraty afirmou que a resposta à referida carta de alegações "foi feita com base em subsídios de diferentes órgãos do governo brasileiro". "Por questões de protocolo, o governo brasileiro não pode liberar acesso à resposta antes que seja publicada formalmente pelas Nações Unidas", explicou a chancelaria.
No documento, o governo brasileiro descreve o caso, inclusive medidas tomadas no âmbito do Poder Judiciário e do Conselho Nacional de Justiça. Também ressalta as medidas tomadas desde 2023 para reforçar a proteção e o livre exercício da profissão jornalística no Brasil.
Nota do Itamaraty
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