Jamil Chade

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Rede de fake news da extrema direita ameaça pacto global contra pandemias

Em 26 de maio de 2023, o britânico Nigel Farage usou suas redes sociais para mandar uma mensagem: "o Tratado Global de Pandemia é um perigo para nossa soberania nacional. Diga não à OMS".

O que parecia uma postagem isolada se revelou parte de um esforço internacional que, nas últimas semanas, ganhou força na tentativa de fazer fracassar uma negociação entre governos coordenada pela Organização Mundial de Saúde.

O tratado, que começou a ser negociado há dois anos, prevê a criação de regras para que governos possam agir de forma coordenada para evitar o colapso que ocorreu com a covid-19. De um lado, países teriam a obrigação de reportar surtos e aumentar a vigilância, enquanto o acesso às vacinas e à tecnologia seria aprimorado.

Mas, enquanto a OMS entra nesta semana nas rodadas finais de negociações para o tratado, o processo está sendo alvo de uma onda de notícias falsas, promovidas principalmente por forças ultraconservadoras e ecoadas pelo movimento de extrema direita nos EUA e na Europa.

Centenas de contas surgiram para ampliar a campanha contra a negociação, incluindo acusações infundadas de que o novo tratado seria um ataque contra a liberdade de expressão.

Uma das contas usadas para espalhar fake news é da influenciadora Sassafrass84, que afirma que "está aqui para reeleger Trump". Em suas páginas, seus seguidores encontram alertas falsos como: "tropas da ONU podem ser enviadas para reunir e vacinar a população".

Em letras menores, mas não menos dramáticas, ela afirma que essa ameaça "também se aplica ao uso da máscara". Ou seja, a conta dá a entender que tropas internacionais poderiam invadir um país para obrigar as pessoas a usar a proteção, uma mentira.

Campanha negativa já afeta negociação

Se até aqui o alerta era de que esse tipo de campanha ameaçava eleições ou regimes democráticos, especialistas e diplomatas apontam que a negociação sobre o Tratado da Pandemia pode ser o primeiro caso conhecido de uma ofensiva da desinformação como forma de minar um tratado internacional.

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O processo vive uma profunda crise, com governos divididos e sem a garantia de que possa ter êxito até o prazo final, em meados de maio.

Mas um dos elementos que chocou os negociadores foi a pressão criada pelas campanhas de desinformação. Como resultado, embaixadores e diplomatas passaram a ter de dar explicações a seus respectivos governos e parlamentares sobre elementos que sequer estavam negociando.

Também acabaram desacelerando o processo negociador, temendo que fossem vistos como pouco transparentes, um argumento amplamente usado pelos autores de teorias conspiratórias sobre supostos acordos secretos.

OMS e países tentam combater fake news

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que o ritmo das negociações tem sido afetado por "uma torrente de notícias falsas, mentiras e teorias da conspiração".

Ashley Bloomfield, diretor executivo do Ministério da Saúde da Nova Zelândia durante a pandemia e copresidente das negociações do Regulamento Sanitário Internacional, concorda com o chefe da OMS. Ele afirma que uma "campanha coordenada e sofisticada" de desinformação está tentando minar o processo.

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De acordo com diplomatas sediados em Genebra, de fato, o impacto dessa campanha tem sido o de retardar qualquer avanço nas negociações, enquanto as delegações calculam como a estratégia de desinformação prejudicará o apoio aos líderes em seus respectivos países.

No início de março, o ex-primeiro-ministro da Reino Unido Gordon Brown alertou que o tratado da OMS está sendo colocado em risco por campanhas de "fake news" destinadas a impedir sua aprovação. Para ele, os governos devem reagir.

"Entre as falsidades que estão circulando estão as alegações de que a OMS tirará a soberania nacional dos países; que ela quer ter o poder de vacinar as pessoas à força; pretende vigiar os movimentos das pessoas por meio de passaportes digitais; e que, sob o acordo, terá a capacidade de implantar uma força policial global de tropas armadas para impor vacinações e bloqueios obrigatórios", disse ele.

Todas essas alegações são totalmente falsas, e os governos devem trabalhar para desmenti-las com fatos claros. Nenhum país cederá sua soberania e nenhum país verá suas leis nacionais serem deixadas de lado.
Gordon Brown, ex-primeiro-ministro do Reino Unido

Brown conclamou os países a "expor a campanha de desinformação de notícias falsas feita por teóricos da conspiração para torpedear um acordo tão necessário". "Esse será um teste de nossa capacidade, como comunidade global, de resistir à fragmentação do nosso mundo e, em vez disso, cooperar em problemas globais que precisam de soluções globais", alerta.

Interferência na eleição presidencial dos EUA

Nos EUA, em meio à corrida presidencial, Steve Bannon instrumentalizou o tratado para atacar Joe Biden, ao mesmo tempo em que abriu espaço em seu programa para "denunciar" a tentativa de contornar o Congresso dos EUA, a fim de adotar o acordo.

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"O governo Biden está em processo de finalização de um acordo que daria à OMS autoridade quase total para ditar as políticas dos Estados Unidos durante uma pandemia", diz a legenda de uma postagem no Instagram do ultraconservador The Epoch Times, sem qualquer relação com a realidade.

De acordo com o "relatório", o tratado incluiria "políticas de vacinação, de confinamento, de fechamento de escolas, rastreamento de contatos de cidadãos americanos e até mesmo o monitoramento de discursos online se esses discursos forem contra a narrativa oficial".

O que diplomatas descobriram é que a campanha de "conscientização" já vem ocorrendo há meses. Ainda em 9 de maio de 2023, por exemplo, o tratado foi um dos principais tópicos de discussão durante o programa que Bannon mantém nas mídias sociais. A ex-deputada republicana de Minnesota Michele Bachmann foi entrevistada pelo guru da extrema direita e acusou Biden de "apresentar emendas que proporiam que todas as nações da Terra cedessem sua soberania sobre as decisões nacionais de saúde para a OMS".

Dez dias depois, Tucker Carlson, da Fox News, também espalhou as mentiras sobre o tratado. "O governo Biden está muito próximo de entregar à Organização Mundial da Saúde o poder sobre todos os aspectos, os aspectos íntimos, de sua vida. Então, imagine os abusos das liberdades civis que você viveu durante os lockdowns da covid, mas permanentes e administrados por um país estrangeiro", disse ele.

Do outro lado, o governo americano tenta negar as falsas alegações da extrema direita. Em uma declaração, insistiu que "é falso afirmar que a Organização Mundial da Saúde tem agora, ou terá em virtude dessas atividades, qualquer autoridade para direcionar a política de saúde dos EUA ou ações nacionais de resposta a emergências de saúde".

Ligações com bolsonarismo

Mas a força da extrema direita não inclui apenas blogueiros e contas de mídia social. Em Genebra, a Alliance Defending Freedom (ADF) International também está reforçando as alegações de que o tratado pode impor restrições à liberdade de expressão.

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O argumento é usado diante de um dos artigos do tratado que, se aprovado, exigiria de governos que lutem contra a desinformação durante uma pandemia. Durante a covid-19, especialistas de todo o mundo chegaram à constatação de que a desinformação estava minando o combate ao vírus e gerando mortes.

Agora, a manobra dos grupos ultraconservadores é vista por fontes internas da OMS como uma tentativa de bloquear qualquer ação de governos ou organizações internacionais de contra-atacar as mentiras que estão sendo espalhadas. "O que eles querem dizer com liberdade de expressão é a liberdade de disseminar a desinformação", argumenta um negociador.

Nos EUA, o Southern Poverty Law Center qualificou a ADF como um grupo de ódio, que apoia a "recriminalização de atos sexuais entre adultos LGBTQ consentidos nos EUA (...) e afirma que uma 'agenda homossexual' destruirá o cristianismo e a sociedade".

A ADF manteve uma estreita colaboração com o governo de Jair Bolsonaro, e seu escritório nos EUA chegou a receber a visita de representantes brasileiros.

Em meados de 2019, Damares Alves aproveitou uma viagem aos EUA como ministra de Direitos Humanos para se reunir com a entidade, em Washington. Dias antes, o Brasil decidiu participar de um evento patrocinado na ONU, em Genebra, pela ADF International. O tema: liberdade religiosa. O governo aproveitou o evento para denunciar suposta perseguição contra cristãos.

Representantes da mesma organização fizeram parte de reuniões entre a pasta de Direitos Humanos e o Itamaraty. No dia 22 de maio de 2020, por exemplo, um encontro ocorreu envolvendo deputados brasileiros, representantes do Itamaraty, do Ministério de Direitos Humanos e Tomás Henriquez, da ADF Chile.

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A Associação Nacional de Juristas Evangélicos —que chegou a ter Damares como membro— estabeleceu um acordo com a ADF. Num comunicado que anunciava o projeto, chamado de Blackstone Legal Fellowship, a associação indicou que a parceria tinha como objetivo "enviar estudantes evangélicos brasileiros que cursam direito para fazer um estágio intensivo nos EUA".

Agora, em uma declaração em fevereiro de 2024, o grupo ultraconservador americano assume a bandeira da liberdade de expressão para justificar ataques contra o tratado. Segundo eles, o texto preliminar da OMS atualmente em consideração "comprometeria os estados a combater coisas como informações enganosas ou desinformação, sem oferecer uma definição para esses termos ou especificar como isso seria feito".

"A minuta atual do Acordo Pandêmico da OMS implica que as pessoas devem ser protegidas de 'informações' que poderiam ser subjetivamente rotuladas como 'enganosas' ou simplesmente consideradas 'excessivas' pelas autoridades", argumenta Giorgio Mazzoli, Diretor de Advocacia da ONU na ADF International.

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