Jamil Chade

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Reportagem

Recusamos o ódio para viver, diz escritora que escapou do genocídio ruandês

Após atravessar um genocídio, os sobreviventes optaram por se recusar a levar o ódio no coração. É o que diz Scholastique Mukasonga, escritora ruandesa que explica como a sociedade do país africano agiu para conseguir olhar de novo para o futuro.

"Nada é construído com ódio no coração. Nós, os sobreviventes do genocídio, o que nos permitiu viver é que não deixamos o ódio habitar nosso coração. O ódio não constrói nada. Apenas destrói", disse em entrevista ao UOL.

Na próxima semana, ela estará no 1º Festival Literário Internacional de Petrópolis, evento que ocorre entre 1º e 5 de maio e que trará para a cidade nomes como Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior, Maria Ribeiro, Jeferson Tenório e outros artistas e escritores. Sua visita coincide com os 30 anos dos massacres que se transformaram no último genocídio do século 20.

"Nós, sobreviventes, aprendemos a viver com as feridas. Nunca iremos nos desfazer delas", disse.

Mukasonga nasceu à beira do rio Rukarara, em Ruanda. De etnia tutsi, ela e sua família foram deportadas em 1960 para a região ruandesa de Nyamata. Treze anos depois, ela se refugiou no Burundi com seu irmão. E foi longe de seus pais e irmãos que ela viveria o genocídio de 1994.

A escritora acumula reconhecimentos internacionais e é cotada para o prêmio Nobel de Literatura. No Brasil, seus livros, como "Nossa Senhora do Nilo", "Baratas e "Kibogo Subiu ao Céu", são publicados pela editora Nós.

Em entrevista ao UOL, ela denuncia o papel do colonialismo como origem do genocídio e critica abertamente o abandono da comunidade internacional diante do massacre.

Mas ela também conta como conseguiu passar pelo luto, depois da morte de 37 de seus parentes, incluindo mãe, pai e irmãos. "A escrita me salvou", disse. "Escrevo para mostrar que eles morreram como seres humanos".

Eis os principais trechos da entrevista:

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Chade: Trinta anos depois do genocídio, como o país olha para o futuro?

Mukasonga: O que pude constatar nos eventos dos 30 anos do genocídio é que houve um número menor de traumas que nos eventos do aniversário de 20 anos. Estávamos num estádio e, desta vez, não tivemos muitas ambulâncias resgatando as pessoas. Desta vez, havia um silêncio. Um silêncio pesado.

Fizemos avanços. Mas as feridas ainda estão presentes. Nós, os sobreviventes, aprendemos a viver com essas feridas. Essas datas têm uma importância capital. Trata-se do momento em que cada um sai de suas dores individuais e, juntos, nos apoiamos na dor. O sofrimento é compartilhado de forma coletiva.

Também notei a importância dos testemunhos apresentados. Lidar com o genocídio é também liberar a palavra. O tempo ajuda a lidar com as feridas. Mas nunca iremos nos desfazer delas. Estarão sempre presentes.

O que também vimos é que a comunidade internacional estava presente, o que nos dá esperança de que não voltaremos a estar na mesma crise.

Também há uma tentativa de não traumatizar nossos filhos. Houve um tempo das lágrimas, do choro. Agora, é o tempo de pensar na construção de nossos filhos.

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A senhora perdeu 37 pessoas de sua família. A sua libertação da palavra foi por meio da escrita?

Foi exatamente isso. As 37 pessoas da minha família eram tudo o que eu tinha em Nyamata. Não havia outro remédio ou caminho que não fosse o de escrever. De colocar no papel o que eu tinha em mim mesma e que no começo não havia como dizer. Num primeiro momento, eu levei dez anos para conseguir voltar para Ruanda. Era impossível falar. Mesmo quando as pessoas me perguntavam de onde eu vinha, eu era incapaz de dizer que vinha de Ruanda. Eu falava o nome de qualquer país africano.

Eu não conseguia falar o nome Ruanda, pois imediatamente me vinha à mente os facões. Com a escrita, consegui superar o bloqueio. Primeiro, você fala com o papel em branco, e é a partir disso que você consegue voltar a encontrar as palavras e construir uma resiliência.

Como funciona a engrenagem do genocídio? Como é esse processo?

Eu não escrevo sobre o genocídio a partir de 7 de abril de 1994. Eu escrevo sobre o que ocorreu antes. O que eu conto é o surgimento do ódio, da discriminação, a partir de 1959. Desde aquele momento, vimos massacres contra os tutsis. A solução final viria mais de 30 anos depois.

Mas de onde veio tudo isso? Os facões foram empunhados pelos ruandeses contra outros ruandeses. Mas precisamos falar do nascimento dessa divisão entre tutsis e hutus, que nunca tinham sido divididos. Todos falavam a mesma língua, viviam uns ao lado dos outros. Um dos elementos de Ruanda é que vimos um "genocídio de vizinhança".

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A divisão foi estabelecida pelos colonizadores belgas, que inventaram a carteira de identidade étnica, a partir das atividades econômicas que cada pessoa mantinha.

Para designar quem era o que, perguntavam qual era a atividade econômica que praticava. Alguém que falava que cuidava das vacas era tutsi. Quem dissesse que cuidava da terra era hutu. Assim, ficou catalogado que a maioria era hutu, com 85% da população.

Portanto, tudo começa com essa famosa carteira de identidade que, na hora do genocídio, vai ser usada. Não se podia matar uma pessoa sem antes olhar sua carteira para saber se era tutsi. Nesse caso, poderiam ser mortos.

Que papel teve a difusão do ódio?

A preparação do genocídio ocorreu em 34 anos de aumento do ódio. Num certo momento, foi estabelecida uma rádio que iria mobilizar toda uma população hutu a matar. Todos tinham um aparelho de rádio, e ela fez um trabalho de convencimento. Não precisava nem pensar. Era necessário matar.

Eram os intelectuais que nunca empunharam um facão, de terno e gravata, que enviavam mensagens para não poupar ninguém. Essa rádio foi fundamental para promover um genocídio de massa, com arma branca.

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E a ONU, onde estava?

Ela nos abandonou.

E qual foi o motivo?

Eu é que gostaria de perguntar.

Por qual motivo eles nos abandonaram? É a pergunta que nos colocamos até hoje. Trinta anos depois, vemos a comunidade internacional, mas, naquele momento, todos nos abandonaram. Ficamos sozinhos diante de nossos assassinos. Mataram as crianças, estriparam os fetos de mulheres grávidas.

Enquanto isso, os estrangeiros pegavam o avião e nos deixavam morrer como se não fossemos seres humanos. É por isso que escrevo. Para dizer que eles morreram como seres humanos.

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Num de seus livros, "A Mulher de Pés Descalços", você fala das mães em Nyamata, para onde sua família foi deslocada décadas antes do genocídio. Quem eram essas mulheres?

Pensava em todas as mães. Usei o retrato de minha mãe. Mas, por ela, conto sobre todas as mães que reagiram da mesma forma. É universal. Não se toca em nossas crianças. E elas não abandonam nunca.

Havia uma canção que dizia que quando uma mulher tutsi dá a luz a uma criança, é a morte que ela coloca no mundo. Mas as mães rejeitaram a ideia de que seus filhos seriam mortos.

Quando fomos levados para Nyamata, criamos uma grande família. Éramos vitimas da mesma infelicidade. Não havia como adotar o individualismo.

As mulheres não cuidavam apenas de suas crianças. Uma mulher tinha o dever de cuidar de todas as crianças. Quando era informado que poderíamos ser atacados, a primeira mulher que pudesse reunia as crianças para comer. Não éramos nunca as crianças de uma só mãe. Éramos os filhos de todas as mulheres.

Em seu último livro "Kibogo Subiu ao Céu", a senhora fala dos colonos que tem sua agenda, motivação e interesse ao chegar em Ruanda. Mas qual foi o impacto dessa colonização e evangelização para as sociedades africanas?

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O impacto é que fomos até o genocídio. Tudo o que fazia parte de nossa cultura foi demonizado e abolido. É isso que eu queria mostrar. Não havia outra forma se não a de ser batizado. Um rei que se recusou foi deposto e morreu no exílio. Seu filho aderiu ao cristianismo.

A população, vendo isso, não tinha como dizer não. Mas o que vimos foi o sincretismo. Vamos à missa, mas não vamos abandonar nossas crenças. Vamos nos esconder para praticar nossa tradição.

Para reconstruir Ruanda após o genocídio, tivemos de recuperar nossa tradição. Ninguém poderia tirar isso de nós.

Ao lado da Justiça ocidental, usamos também nossas Cortes tradicionais, as Gacacas. Líderes comunitários se sentam ao redor de uma árvore para lidar com os conflitos entre vizinhos. Isso tudo para recriar o diálogo entre o assassino e a pobre viúva que teve todos os filhos e o marido mortos. Da noite para o dia, ela estava diante do assassino.

Essas Cortes deram a palavra às vítimas, pelo menos para que reclamassem informação sobre onde haviam sido enterrado seus filhos. Latrinas públicas passaram a ser locais de memória, pois os assassinos disseram que ali jogaram os corpos dos mortos.

A senhora chega ao Brasil num momento em que o ódio é uma arma política. Que mensagem a senhora pode passar aos brasileiros sobre o risco do ódio?

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Eu gostaria de ter uma solução mágica, mas não é o caso. O que eu posso dizer é que foi a literatura que me salvou.

No Brasil, vocês têm Conceição Evaristo, Itamar Vieira Júnior e tantos outros. Não podemos subestimar o poder da literatura. O escritor é livre, e alguns pagam caro por isso. Mesmo a partir do meu exemplo, eu escrevi por não ter escolha. E eu queria colocar minha pedra na reconstrução do edifício.

Viajo o mundo e ainda hoje encontro pessoas que me dizem que não sabiam o que ocorreu em Ruanda, o ultimo genocídio do século 20. Devemos encorajar aqueles que querem escrever.

Nunca deve ser dito que não há solução. Não se deve aceitar o que não é normal. Continuo otimista, o que não quer dizer ingênua.

Há algo que ainda falta no Brasil, lamento. Não se pode negar a história. A escravidão existiu no Brasil. Está escrita. Essa história precisa ser ensinada na escola. Ela não pode ser ocultada. Mas tampouco podemos nos desesperar. Nada é construído com ódio no coração. Nós, os sobreviventes do genocídio, o que nos permitiu viver é que não deixamos o ódio habitar nosso coração. O ódio não constrói nada. Apenas destrói.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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