Jamil Chade

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Reportagem

Extremo climático no Brasil joga luz sobre anomalias no planeta, diz ONU

As inundações no Rio Grande do Sul são um alerta sobre o impacto econômico e social das mudanças climáticas que atinge todo o mundo. O alerta é de Celeste Saulo, secretária-geral da Organização Meteorológica Mundial.

Numa coletiva de imprensa nesta quarta para falar da situação latino-americana, a chefe da agência da ONU deixou claro que as "chuvas torrenciais não são mais que outra manifestação muito dolorosa de algo que sabemos que está afetando no globo".

"A catástrofe é um trágico recordatório de como eventos cada vez mais intensos e frequentes afetam o desenvolvimento socioeconômico", disse.

Paola Albrito, representante do secretário-geral da ONU sobre Redução de Desastres, também destacou a crise climática no Brasil, apontando para "o doloroso alerta" que o desastre no Rio Grande do Sul representa. Ela felicitou a resposta das autoridades brasileiras.

Mas alertou que a América Latina já é hoje o segundo continente mais afetado no mundo por desastres naturais. Em 2023, 11 milhões de pessoas foram afetadas na região, deixando danos de US$ 20 bilhões.

"A prevenção custa menos", disse. Mas lamentou que apenas 1% da ajuda internacional para a região vai para a prevenção.

Informe alerta para situação brasileira

Ambas participavam do lançamento do informe da Organização Meteorológica Mundial sobre a América Latina e que revela que o continente sofreu, no ano passado, seu momento mais dramático em termos de temperatura e com um número elevado de eventos extremos.

O Brasil, segundo o levantamento, não foi poupado. E todos os sinais indicam que essa realidade continuará pelos próximos anos. O país registrou enchentes, chuvas, secas históricas, temperaturas inéditas, mortes e prejuízos econômicos.

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A América Latina viveu em 2023:

O ano mais quente já registrado;

Secas, ondas de calor, chuvas e inundações prejudicam o desenvolvimento econômico;

O aumento do nível do mar ameaça as áreas costeiras e o recuo das geleiras se acelera.

"Infelizmente, 2023 foi um ano de riscos climáticos recordes na América Latina e no Caribe", disse a secretária-geral da OMM, Celeste Saulo.

O que revela o mapa do desastres naturais no Brasil

Secas

Segundo a agência da ONU, a América do Sul registrou chuvas abaixo do normal na região central do Chile nos Andes centrais e no sudoeste do Peru. No oeste da Amazônia, porém, as chuvas foram cerca de 40%-70% abaixo do normal e no restante do Brasil tropical a taxa ficou entre 20% e 40% abaixo do normal.

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"A seca tornou-se cada vez mais generalizada na metade norte da América do Sul à medida que o ano avançava", disse. "As chuvas de junho a setembro ficaram bem abaixo da média em grande parte da Bacia Amazônica, e os rios caíram para níveis bem abaixo da média. Oito estados brasileiros registraram a menor precipitação de julho a setembro em mais de 40 anos, com totais de precipitação de cerca de 100 a 300 mm/mês abaixo do normal", destacou.

De acordo com as autoridades do Porto de Manaus, o nível do Rio Negro caiu para 12,70 m em 26 de outubro, o mais baixo já registrado desde 1902 quando as observações começaram.

"Juntamente com a falta de chuvas na região, um inverno e uma primavera austral mais quentes foram observados na região sudoeste da Amazônia, devido a um domo de ar quente e seco", disse.

Seis ondas de calor afetaram a região entre agosto e dezembro. Em uma área vizinha a Manaus, milhares de peixes foram encontrados mortos flutuando na superfície do Lago Piranha no final de setembro. No lago Tefé, a 500 km a oeste de Manaus, mais de 150 botos cor-de-rosa foram encontrados mortos no final de setembro, com a possível causa relacionada ao calor excessivo, já que a temperatura da água atingiu o recorde de 39,1 °C em 28 de setembro.

Outros rios principais da Amazônia, incluindo o Solimões, Purus, Acre e Branco, sofreram quedas extremas em seus níveis em algumas regiões e secaram completamente em outras. O nível do rio Madeira em Porto Velho foi o mais baixo observado em 56 anos de medições.

A seca de longo prazo continuou na América do Sul subtropical. Durante a primeira metade do ano, os efeitos do La Niña ainda eram visíveis; os impactos em cascata da falta de água na Bacia do Prata atingiram mais fortemente o Uruguai, o norte da Argentina e o sul do Brasil.

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A precipitação de janeiro a agosto ficou de 20% a 50% abaixo da média em grande parte do norte e do centro da Argentina, com algumas regiões experimentando seu quarto ano consecutivo de precipitação significativamente abaixo da média. Houve grandes perdas de safra na Argentina, com a produção de trigo em 2022-2023 mais de 30% abaixo da média de cinco anos. No início de junho, o governo uruguaio declarou emergência hídrica, isentando impostos sobre a água engarrafada e ordenando a construção de um novo reservatório.

"Essas condições ameaçaram a economia e os ecossistemas da América do Sul. Até meados de outubro, nas principais áreas produtoras de alimentos no leste da Argentina e no sul do Brasil, a ocorrência de chuvas melhorou as condições, mas não pôs fim completamente à seca na região", explicou a OMM.

Chuvas e enchentes

Mas o Brasil também viveu eventos climáticos extremos relacionados com chuvas acima do normal. Essas anomalias - com um volume de água de 40% a 50% acima dos índices - "dominaram partes do sul e sudeste do Brasil".

Elas foram "relacionadas a eventos de precipitação intensa concentrados em alguns dias". "Alguns dos padrões de precipitação observados foram consistentes com os padrões típicos de precipitação associados às condições de La Niña durante a primeira metade de 2023 e com El Niño na segunda metade, especialmente chuvas intensas no sul do Brasil e seca no oeste da Amazônia", destacou.

Segundo a OMM, inundações e deslizamentos de terra provocados por chuvas fortes causaram mortes e perdas econômicas significativas. Em São Sebastião, 683 mm de chuva se acumularam em 15 horas, provocando um deslizamento de terra que causou pelo menos 65 mortes.

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As fortes chuvas de 21 de abril de 2023 causaram inundações e deslizamentos de terra no sul da Bahia, obrigando milhares de pessoas a deixarem suas casas. 92,9 mm de chuva caíram em Santa Cruz Cabrália nas 24 horas que antecederam o dia 22 de abril. No dia seguinte, a cidade de Belmonte registrou 216,0 mm e Porto Seguro, 87,9 mm.

O estado do Rio Grande do Sul foi afetado por eventos de chuva intensa em 2023. Em um desses eventos, a chuva torrencial, trazida por um ciclone extratropical, provocou inundações e deslizamentos de terra em 16 de junho. No total, 49 municípios do estado foram afetados por chuvas intensas e ventos fortes.

Em Maquiné, caíram até 300 mm de chuva em 24 horas. Em 4 de setembro, as fortes chuvas e inundações causaram pelo menos 48 mortes, 20.978 pessoas desalojadas e 4.904 desabrigadas.

Também causou danos generalizados no estado, onde várias estações registraram mais de 100 mm de chuva em 24 horas, levando a um aumento de 12 m no nível do Rio Taquari nos dias 6 e 7 de setembro. As fortes chuvas continuaram a afetar o estado durante todo o mês de setembro e início de outubro. Em 10 de outubro, 136 dos 295 municípios de Santa Catarina foram afetados pelas chuvas e enchentes, 89 dos quais declararam estado de emergência.

No final de outubro, uma chuva intensa em Foz do Iguaçu, Paraná, perturbou a cidade. A estação próxima ao aeroporto registrou aproximadamente 239 mm em três dias (27 a 29 de outubro). As Cataratas do Iguaçu tiveram um fluxo de 24.200 m3/s em 30 de outubro. De acordo com a administração do Parque Nacional do Iguaçu, esse é o valor mais alto registrado nos últimos anos. Normalmente, a vazão das Cataratas varia de 500 m3/s a 1.000 m3/s.

A chuva intensa ainda elevou o nível do rio Uruguai, e as travessias de balsa entre o Brasil e a Argentina foram suspensas porque o nível seguro foi ultrapassado. As travessias entre o Brasil e a Argentina no porto internacional de Porto Xavier também foram suspensas devido ao aumento do nível do rio Uruguai.

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Ondas de calor

Outro destaque do mapa regional do clima é a onda de calor intensa que afetou a América Latina e o Brasil, em especial.

Durante a segunda quinzena de agosto de 2023, as temperaturas em partes do Brasil ultrapassaram 41 °C, enquanto a América do Sul foi atingida por um clima escaldante no meio do inverno. Em Cuiabá, no centro-oeste do Brasil, a temperatura chegou a 41,8 °C em 20 de agosto. No Rio de Janeiro, a temperatura chegou a 38,7 °C em 22 de agosto.

Países como o Brasil, Peru, Bolívia, Paraguai e Argentina registraram as temperaturas mais altas de setembro. Temperaturas recordes foram registradas na Guiana Francesa, com 38,8 °C em Saint-Laurent, e no Brasil, com 38,6 °C em Belo Horizonte, em 25 de setembro.

O clima de seca cobriu a maior parte da região central do Brasil, incluindo o oeste da Amazônia, onde a combinação de temperatura mais alta e condições secas contribuiu para uma das piores secas de primavera e alguns dos níveis mais baixos dos rios neste século.

Essa mesma onda de calor afetou quase todo o Brasil, exceto a região sul, com temperaturas recordes em todo o país. Cerca de 120 estações registraram suas temperaturas máximas em 12 de novembro. A maior ocorreu no Rio de Janeiro, que registrou 40,4 °C, seguido por Cuiabá com 39,6 °C e Teresina com 38,9 °C.

São Paulo teve a maior temperatura dos últimos nove anos, com 37,1 °C em 12 de novembro.

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De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), Porto Murtinho registrou uma máxima de 42,3 °C em 11 de novembro, e a temperatura de 44,8 °C registrada em Araçuaí (MG) em 19 de novembro foi a mais alta já registrada no Brasil.

Grandes incêndios florestais queimaram as regiões afetadas pelo calor no Paraguai, no Brasil e na Bolívia. Na Amazônia, 22.061 focos de incêndio foram registrados em outubro, o pior registro para o mês desde 2008, resultando em uma fumaça pesada que afetou toda a população de Manaus.

Perdas econômicas

Os eventos climáticos tiveram um impacto imediato na economia. No Brasil, tanto o excesso de chuva quanto a seca, ligados ao El Niño, atrasaram o plantio de soja.

A produção de trigo no estado do Paraná caiu 889.000 toneladas métricas em relação ao potencial, e espera-se uma perda de 30% em sua safra de trigo, enquanto as autoridades do Rio Grande do Sul relataram um atraso no plantio da soja.

Entre 14 e 20 de novembro, o excesso de umidade no solo prejudicou as operações de conclusão do plantio de soja no sudoeste do Paraná. Os impactos climáticos favorecidos pelo evento La Niña na safra 2022/2023 e pelo El Niño no ciclo seguinte geraram perdas de US$ 550 milhões para a agricultura do Paraná.

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O estado de Santa Catarina já estima uma perda de US$ 500 milhões na agricultura. O fim do ciclo da safra de inverno austral - trigo, cevada e aveia - registrou uma redução significativa na quantidade e na qualidade da produção. Como resultado do granizo, da chuva e dos ventos fortes que atingiram o Rio Grande do Sul, houve perdas relacionadas à infraestrutura, à produção primária, à pecuária e às pastagens, com 198 municípios afetados e emergência declarada em 115 deles.

As principais culturas de grãos afetadas foram trigo, soja, milho, silagem de milho e arroz. As perdas nas áreas de produção atingiram 120.600 hectares, com uma perda estimada de mais de 186 mil toneladas métricas.

Serviço meteorológico ainda não completo

Mas o informe também alerta que o Brasil ainda não conta com um serviço meteorológico que possa ser considerado como "completo ou avançado".

Na classificação da agência da ONU, o que existe no país é um serviço "essencial", o que sugere limitações no escopo e na profundidade das informações disponíveis para o público e para as autoridades relevantes. Apenas 6% dos países latino-americanos fornecem serviços "completos ou avançados" para apoiar a tomada de decisões em setores sensíveis ao clima.

A OMM destaca que os serviços meteorológicos são "fundamentais para proteger a saúde pública, fornecendo informações precisas e em tempo hábil, capacitando as comunidades e os indivíduos a se prepararem e responderem com eficácia aos riscos relacionados ao clima em um curto período de tempo, inferior a 30 dias".

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"A função crucial dos serviços meteorológicos está na sua capacidade de oferecer informações sobre as condições meteorológicas futuras, o que é vital para o planejamento e a redução dos possíveis impactos sobre a saúde e a segurança. Entretanto, apesar de sua importância, os dados disponíveis revelam uma lacuna notável no nível de serviços prestados", disse, numa referência ao continente.

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