Jamil Chade

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Mineração de ouro no Xingu vira queixa da ONU contra Brasil, Canadá e EUA

Um projeto de mineração de ouro no coração da Amazônia é denunciado por relatores das Nações Unidas que, em cartas aos governos do Brasil, do Canadá e dos EUA, alertam para o impacto ambiental da iniciativa e apontam para "ameaças e intimidação" contra povos indígenas, pequenos agricultores e ambientalistas.

As cartas, enviadas em 12 de março de 2024, foram obtidas pelo UOL e revelam a preocupação em relação ao projeto Volta Grande, da mineradora canadense Belo Sun Mining a apenas 20 quilômetros da Usina de Belo Monte, no Pará.

Os documentos são assinados por Mary Lawlor, relatora especial sobre a situação dos defensores de direitos humanos, Robert McCorquodale, presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre a questão dos Direitos Humanos e Corporações Transnacionais, David Boyd, relator especial sobre Meio Ambiente, e José Francisco Cali Tzay, relator especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

As cobranças não significam que sanções serão impostas sobre o Brasil, mas revelam que existe, hoje, um monitoramento internacional sobre o que ocorre na Amazônia e uma pressão sobre governos e multinacionais.

Entre os principais acionistas da mineradora estão os fundos de investimento Sun Valley Gold LLC (domiciliado nos EUA) e RBC Global Asset Management Inc.

Cotada na Bolsa de Toronto, a empresa não respondeu ao UOL sobre as acusações. O governo americano tampouco deu uma resposta às cobranças dos peritos.

Desde 2012, a Belo Sun Mining vem desenvolvendo o projeto de ouro no rio Xingu e que atinge 175.560 hectares em vários municípios e inclui uma mina de ouro a céu aberto. De acordo com a carta, ela visa uma reserva de ouro que a empresa estima em 3,8 milhões de onças.

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Imagem: Arte UOL

Os dados apontados pelos relatores indicam preocupações sobre potenciais impactos negativos do projeto:

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A área identificada para a mina é o lar ancestral de vários povos indígenas, incluindo territórios demarcados e não demarcados, e comunidades ribeirinhas cujas vidas e o cumprimento de seus direitos estão interligados com o rio Xingu e sua saúde, inclusive como sua principal fonte de alimento.

Muitas dessas comunidades já tiveram seus direitos humanos gravemente afetados pelo Projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Trechos do documento da ONU

O projeto foi objeto de pelo menos nove reclamações legais desde 2013, inclusive do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública do Pará e da Defensoria Pública Federal, e do Ministério Público Estadual. Entre as queixas estão:

  • adequação dos estudos da empresa sobre o impacto do projeto proposto sobre os povos indígenas afetados;
  • a legitimidade do processo de licenciamento, o nível de consulta às comunidades locais;
  • e possíveis violações dos direitos à terra dos povos indígenas locais.

Em 2017, a licença que havia sido dada pelo estado do Pará foi suspensa por uma decisão da Justiça Federal.

"Apesar dessas reclamações e das preocupações de longa data sobre o possível impacto da mina, em 2021 o projeto Volta Grande foi selecionado pelo Ministério de Minas e Energia como um projeto prioritário no âmbito da Política Pró-Minerais Estratégicos de 2021", diz a carta.

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Canal do rio Xingu na região da Volta Grande, próximo da barragem de Belo Monte, que causou a redução volume de água
Canal do rio Xingu na região da Volta Grande, próximo da barragem de Belo Monte, que causou a redução volume de água Imagem: Lalo de Almeida - 19.set.22/Folhapress

Ataques contra ativistas e indígenas

O documento revela incidentes desde 2017. Em novembro daquele ano, durante uma reunião para discutir os riscos do projeto de mineração de Belo Sun na Universidade Federal do Pará, o prefeito de Senador José Porfírio, um dos municípios diretamente afetados pelo projeto proposto, e cerca de 40 outras pessoas interromperam o evento e ameaçaram os participantes.

A situação, segundo os relatores da ONU, se agravou nos anos seguintes. Em 2020, defensores de direitos humanos receberam ameaças graves, sendo que pelo menos um deles foi forçado a deixar a área para sua própria segurança.

Segundo os relatores, as ameaças foram supostamente perpetradas por apoiadores locais da mina, bem como por uma empresa de segurança privada contratada pela Belo Sun .

"Os funcionários emrpesa também intimidaram os povos indígenas e os camponeses que vivem na área do projeto proposto por meio de patrulhas armadas e filmando-os com câmeras e drones sem o seu consentimento. Defensores de direitos humanos, indígenas e camponeses também foram submetidos a violência física com o objetivo de forçá-los a deixar suas casas, em razão do aumento dos preços da terra impulsionado pelo projeto da Belo Sun", afirmaram.

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Em junho de 2022, em resposta ao anúncio de um contrato entre a Belo Sun e o Incra que concedia à empresa acesso a terras públicas destinadas à reforma agrária na área proposta para a mina, aproximadamente cem camponeses sem terra da área, juntamente com povos indígenas, formaram um acampamento de protesto durante dez dias em terras incluídas no acordo e teriam sido ameaçados.

Ofensiva legal

Em 17 de outubro de 2023, a Belo Sun entrou com uma queixa criminal contra 40 indivíduos que haviam expressado oposição ao projeto de mineração, incluindo 33 camponeses envolvidos no protesto de terra mencionado acima e 6 representantes da sociedade civil.

"Em sua queixa, a empresa acusa os camponeses envolvidos em ocupações de terra em áreas demarcadas para a empresa para o projeto Volta Grande de criminalidade, e os representantes da sociedade civil de serem cúmplices", dizem os relatores da ONU.

A denúncia foi feita após um relatório publicado pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), membro da Aliança pela Volta Grande do Xingu, em maio de 2023, no qual o grupo alegou violações dos direitos dos povos indígenas pela Belo Sun.

Cobranças ao governo brasileiro

Os relatores da ONU expressaram a Brasil a "séria preocupação com as supostas ameaças, intimidação e assédio legal e físico" e alertaram que "não pode haver desenvolvimento sustentável sem respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente".

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A carta pediu que o governo brasileiro fornecesse detalhes sobre a situação atual da implementação do projeto de mineração Volta Grande, bem como sobre as queixas legais registradas contra ele.

Os relatores também cobraram medidas para garantir que todos os povos indígenas afetados tenham tido acesso a informações sobre o projeto e tenham podido participar plenamente das consultas relativas ao seu desenvolvimento.

Foi questionado ainda quais são as medidas de proteção estabelecidas aos defensores dos direitos humanos e indígenas, assim como os atos "para prevenir, abordar ou mitigar possíveis impactos ambientais e sobre os direitos humanos do projeto de mineração".

Brasil cita embate entre Belo Monte e mineradora

Em carta enviada para a ONU em 13 de maio de 2024, o governo brasileiro afirmou estar ciente das alegações sobre o Projeto Volta Grande e que o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos está avaliando as informações, assim como acompanhando os processos legais contra os ativistas.

O governo também indicou que está "pronto" para receber qualquer pedido para a inclusão dessas pessoas no programa de proteção. Na carta, o governo ainda afirma estar "comprometido com a segurança" dessas pessoas.

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Quanto ao projeto da Belo Sun, o governo explicou que a consideração do licenciamento está "em fase inicial" de exame no Ibama.

Segundo a resposta do Estado, ainda existe a proposta de realizar uma nova rodada de consultas às comunidades da região do rio Xingu.

O governo também aponta que "não há estudos conclusivos sobre os impactos sinérgicos a serem suportados por Volta Grande do Xingu no cenário hipotético de operação simultânea da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e da Mina Belo Sun".

De fato, a carta explicou para os peritos da ONU que o consórcio Norte Energia S/A, que opera Belo Monte, solicitou à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Funai do Pará, em 14 de março de 2022, a reavaliação do processo de licenciamento da Mina Belo Sun, considerando o "conflito entre as atividades e o risco da implantação da atividade de mineração em conjunto com a operação da usina de Belo Monte". Argumentação é que estudos "indicavam incompatibilidade entre empreendimentos hidrelétricos e de mineração".

A briga, segundo a resposta do Estado, também é entre a mineradora e o Ministério dos Povos Indígenas. A pasta liderada por Sonia Guajajara questiona o motivo da exclusão das consultas da empresa com os povos indígenas xikrin-mebêngôkre da Terra Indígena Trincheira-Bacajá e dos povos indígenas juruna da Aldeia São Francisco.

Segundo a interpretação da empresa, uma portaria de 2015 "afastaria a necessidade de realização de estudos sobre o componente indígena e de consulta aos povos indígenas localizados a mais de 10 km do empreendimento".

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Canadá diz que mineradora não compareceu em treinamento no Rio

Em 17 de maio de 2024, o governo do Canadá respondeu aos peritos da ONU. Segundo as autoridades canadenses, seu escritório comercial no Rio de Janeiro informa às empresas sobre o código de conduta que espera que suas multinacionais sigam pelo mundo (respeito aos diretos humanos e às leis, transparência em suas operações, diálogo com os governos anfitriões e comunidades e atuação social e ambientalmente responsáve).

O governo afirmou à ONU que "convidou a Belo Sun para participar de três treinamentos" sobre "engajamento de partes interessadas e prevenção de conflitos" — em março de 2023, fevereiro de 2024 e um treinamento individual em março de 2024 —, mas a "Belo Sun não compareceu".

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