Jamil Chade

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Opinião

Quem tem medo de Maria da Penha?


Nesta semana, publiquei em minha coluna ao lado da jornalista Cristina Fibe a notícia de que Maria da Penha teria a proteção do estado diante das ameaças que está recebendo, 41 anos depois de ser alvo de violência e 18 anos depois de emprestar seu nome para a criação de uma lei que passou a ser uma referência mundial.

Além dos comentários de indignação, porém, o que notei foi o desembarque em peso de mensagens de ataques à vítima, numa mistura de negacionismo, misoginia e ódio.

Mas quem tem medo de Maria da Penha?

O que de fato ela representa ao questionar e dar força de lei para uma nova estrutura de sociedade?

Ainda que existam diferenças substanciais, um eventual caminho para encontrar uma resposta pode estar no recente livro de Judith Butler, Quem tem medo do Gênero?

Publicado neste ano, a obra é resultado de sua visita ao Brasil, em 2017, quando encarou hostilidade e ataques. A filósofa chegou a ser agredida num aeroporto em São Paulo.

Certamente os grupos que atacam a americana não são, necessariamente, os mesmos que visam Maria da Penha. O ódio que elas despertam vem de campos diferentes.

Mas há um fenômeno que se entrelaça e está presente em ambos os lados: o medo de um novo mundo. Segundo a autora, o "gênero" se tornou um fantasma generalizado: "um fenômeno psicossocial em que medos e ansiedades íntimos se tornam socialmente organizados para incitar paixões políticas".

"Gênero", neste caso, serve como uma tradução do progresso feito em relação à igualdade de gênero, justiça reprodutiva, autonomia corporal e reconhecimento legal de minorias sexuais.

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Ironicamente, a própria definição de gênero é metamórfico e facilmente moldada para atender a interesses políticos variados. Assim, diz ela, o fantasma é "capaz de conter qualquer ansiedade ou medo que a ideologia antigênero queira alimentar para seus próprios fins, sem precisar fazer com que nada disso seja coerente."

Para ela, existe uma "a dimensão alucinatória do sadismo moral" no centro dos ataques. Os movimentos que encabeçam essa ofensiva estariam negociando o medo que acompanha o mal-estar político e as incertezas de nossa era, incluindo a ameaça existencial do caos climático, a guerra, o desmonte do estado de bem-estar e o desemprego.

O "fantasma do gênero", assim, é instrumentalizado para deslocar essas ameaças existenciais para os bodes expiatórios.

O ataque a Maria da Penha pode e deve ser lido como um assalto ao gênero. Como uma ação que deriva da propagação e sedimentação do "fantasma do gênero". É o ataque contra a mulher símbolo de uma lei que alterou a "ordem do gênero" tal como existia no que diz respeito à violência.

Ao escutar e ler o que os autores de ataques contra Maria da Penha usam como argumentos, tenho a convicção de que a extrema direita também sabe o poder de transformação de sua luta. E sabe que a construção de um novo mundo é o que ela ecoa. Por isso, tem pavor de Maria da Penha e o terremoto que seu nome - em forma de lei - representam.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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