Jamil Chade

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Opinião

Movimento de escritores busca a construção de um novo Brasil

Quando o Festival Literário Internacional de Araxá abrir suas portas nesta quarta-feira (19) e seu curador principal, Afonso Borges, der início aos debates, o que estará sobre a mesa não é apenas uma discussão sobre literatura ou o lançamento de um ou outro livro. Com alguns dos principais nomes da cultura brasileira, o evento fará parte de uma estratégia deliberada de seus organizadores de construir um novo Brasil.

Ao longo dos últimos anos, Borges se aliou a Tom Farias e Sergio Abranches para costurar a criação de uma comunidade de autoras, escritores, filósofos, ativistas e artistas com a ousada e necessária missão de pensar alternativas a um sistema que, em todas suas dimensões, dá claros sinais de esgotamento.

Além de Araxá, o trio organiza festivais em Paracatu, Itabira e Petrópolis, sempre com a preocupação central em trazer a diversidade do Brasil e apontar caminhos.

A construção de um novo país passa pelo resgate da história de resistência, seja por meio dos relatos de Itamar Vieira Junior ou de Socorro Accioly, com suas capacidades de retratar um Brasil muitas vezes distantes das grandes cidades. "Sertão é uma memória, uma lembrança, um tempo, uma dimensão, um campo de possibilidades onde a fé por vezes suplanta a miséria. Sou neta, bisneta, tataraneta de sertanejos. O sertão é minha herança", disse a escritora, em recente entrevista.

Já Itamar escolheu terminar seu best-seller "Torto Arado" com a frase "sobre a terra há de viver sempre o mais forte", uma espécie de epígrafe da luta de séculos no Brasil. Mas ele ressignifica essa dicotomia. "Os fortes são os que permanecem lutando pela sobrevivência, por mais que a vida seja violenta e dura, não abaixaram a cabeça", diz o escritor.

Também representa resistência a voz e pensamento crítico da jurista e escritora Lívia Sant'Anna Vaz, que questiona a ideia de uma Justiça cega. A mulher branca, de olhos vendados e uma espada pendente é, portanto, apenas uma narrativa coagida.

"Foi imposta a ideia de uma Justiça eurocêntrica, brancocêntrica e grega", disse, numa referência à mitologia. Lívia traz a ideia de que a Justiça é uma mulher negra, sua coroa são seus cabelos crespos e a espada está em riste. Tudo isso por ela saber como é difícil a construção de uma Justiça para todos.

Seus olhos? Jamais vendados. Jamais.

Na visão da escritora, ao se manter com os olhos vendados, a Justiça que foi imposta tem apenas a capacidade de manter as coisas como estão. A preservação do status quo. Ou como Lívia diria: "privilégios para uns, desigualdade para muitos".

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Contra a preservação do status quo é também que se posiciona a escritora Morgana Kretzmann, que destaca como busca mostrar a resistência, "as lutas de povos e comunidades que querem defender o seu chão e a sua terra, que para isso precisam defender o Meio Ambiente."

A questão climática, de fato, é um dos pilares do movimento, num reconhecimento da urgência em buscar novas formas de pensar e existir.

"Os humanos que têm nojo da terra me incomodavam muito; e pensei como vou dizer isso sem ofender demais? Então, pensei em criar o 'Ideias para adiar o fim do mundo", explicou Ailton Krenak, em sua fala também no festival de Petrópolis.

Os eventos ainda passaram ser um palco de discussão para o livro "Amazônia na encruzilhada: o poder da destruição e o tempo das possibilidades", escrito por Míriam Leitão, considerado pelo próprio Krenak como um dos trabalhos mais completos sobre a disputa econômica na exploração de matérias-primas e a indignação diante da destruição.

A indignação, ao longo dos festivais dos últimos anos, também esteve nas cartas de amor ao Brasil escritas por Juliana Monteiro, na luta contra a censura por parte de Jefferson Tenório, pela força dos textos de Carla Madeira e pela capacidade de análise da realidade de Sergio Abranches.

Até mesmo em suas dimensões internacionais os festivais buscam uma nova relação. Em sua última edição, a festa literária em Petrópolis promoveu o encontro entre África e Brasil, traduzido no abraço entre as escritoras Conceição Evaristo e Scholastique Mukasonga, de Ruanda.

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"A África mítica nos foi necessária para afirmar a nossa afro-brasilidade. Enquanto nos colocavam como cidadãos de segundo plano, como algo que sobra nessa nação, o que alimentou a nossa dignidade foi o continente africano que nós não conhecíamos", disse Conceição Evaristo.

"Uma árvore sem raiz está fadada a morrer. Essas histórias são a nossa raiz. Para se inscrever na comunidade internacional, temos que saber quem nós somos. As histórias nos permitem saber quem nós somos e de onde viemos", completou Scholastique Mukasonga.

Em Araxá, a obra continua, sempre com o envolvimento de escolas locais, autores da região e o engajamento da comunidade, além de atividades acessíveis, inclusivas, antirracistas, éticas e educativas. Sempre de forma gratuita.

Na rua do lado de fora, será montada a "Rua da Economia Criativa", com apresentações de música, um ônibus biblioteca itinerante e empreendedores com seus produtos artesanais.

O 12.º ano do festival homenageará Djamila Ribeiro e Bruna Lombardi, e terá como convidada especial Conceição Evaristo. A programação inclui quatro atrações internacionais: a cubana Teresa Cárdenas, o português Afonso Cruz e a francesa Hannelore Cayre.

Os organizadores ainda decidiram abandonar o discurso e implementar a ideia de igualdade. A programação garante que mulheres negras, brancas, homens negros e brancos ocupem exatos 25% dos lugares destinados aos palestrantes.

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As indígenas Trudruá Dorrico e Geni Núñez levam suas poderosas vozes para a construção de uma alternativa que, por enquanto, vê sua silhueta começar a ser desenhada.

Um movimento literário repleto de esperança e luta, de compromisso e ousadia. Um projeto que mereceria ser transformado em uma iniciativa itinerante e permanente. Um sistema de festivais - as FLIs. Eventos éticos, antirracistas e democráticos que percorreriam o Brasil levando livros, cidadania, utopias, diversidade e dando voz aos autores locais.

Em sua recente entrevista à coluna, Socorro defende a necessidade de se encontrar uma nova forma de falar do Fantástico e do Maravilhoso no contexto da literatura brasileira. "Espero que a crítica literária esteja pensando em algum termo para nomear o que estamos fazendo", disse.

Se o termo já está sendo cunhado ou não, são nos festivais literários que um novo Brasil começa a ser sonhado, rabiscado e soletrado.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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