Jamil Chade

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'Extrema direita moderada não existe', diz ex-premiê português

José Sócrates solta uma espontânea e generosa gargalhada quando é questionado se existe extrema direita moderada. Em entrevista exclusiva à coluna, o primeiro-ministro de Portugal entre 2005 e 2011 deixa claro que o que marca movimentos de ultra direita é a violência, a negação do outro e a divisão da sociedade. Mas admite que o Ocidente vive uma batalha para defender a democracia.

Ex-secretário-geral do Partido Socialista, Sócrates ocupou diferentes cargos de ministro e foi inclusive um dos organizadores da Euro 2004, em seu país.

Em 2015, o ex-primeiro-ministro foi investigado por suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro. Em primeira instância, o juiz de instrução indicou que não havia indício de crime. Mas o caso foi reaberto por magistrados em uma segunda instância.

Sócrates estará no Brasil no dia 27 de julho como convidado do 3º Festival de Inverno em Avaré (SP), que também contará com nomes como Silvio Almeida (ministro de Direitos Humanos), Márcia Tiburi, Natália Timmerman e Bob Wolfenson. O evento é organizado pelo Projeto Cordão, iniciativa liderada por Camila Valim e Rafael Valim.

Ao UOL, o ex-chefe de governo de Portugal também fala das eleições na França e Reino Unido e da vitória da esquerda nesses países.

Eis os principais trechos da entrevista:

Chade: Há quem diga que pode haver um bolsonarismo moderado. Há uma extrema direita moderada?

Sócrates: Isso é uma contradição. Isso não existe. Extrema direita evoca sempre a violência. Todo o discurso é de agressividade, de negação do outro. Identificar um não-povo. Eles dividem o povo em duas categorias. O povo original e puro. E o não povo.

No Brasil, a direita que respeitava a democracia foi varrida. O centro político foi absolvido pela esquerda na luta pela democracia. Isso que ocorreu com a eleição de Lula.

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Ficou-se à espera de que a direita se renovasse e que a direita democrática explicasse aos brasileiros que, para ganhar eleição, precisam ter candidato com moderação. Mas toda a direita brasileira ainda está refém de Bolsonaro. Ele representa o que há o pior do Brasil, mas ainda tem apoio.

A esquerda voltou a vencer na França e no Reino Unido, depois de muitos anos. O que essas eleições mostram?

Essas eleições representam um bom momento da Europa, que já não vivíamos há muito tempo. Há uma reação das democracias europeias diante do avanço da extrema direita. Os democratas estão encontrando uma nova identidade e um novo motivo de unidade. Não apenas as esquerdas, mas o centro democrático, estão encontrando um motivo de unidade para enfrentar os populismos nacionalistas que são de direita.

A esquerda ganhou numa potência europeia, que é o Reino Unido, que faz parte do Conselho de Segurança da ONU e é uma potência nuclear. Não se trata apenas de uma reação à extrema direita, às maluquices de Boris Johnson, mas significa também um certo julgamento daquilo que foi o Brexit. Pela primeira vez, as pessoas expressaram uma insatisfação em relação ao que ocorreu depois da saída dos britânicos da União Europeia. É um sentimento de grande decepção depois das promessas de que haveria uma grande prosperidade e que a saída da UE seria a liberdade, que o país ocuparia de novo no mundo um papel de influência radiante. Por isso, insisto que essa é uma eleição que tem um importante papel geopolítico.

E na França?

Bom, a eleição na França mostra que todos os que criticaram Emmanuel Macron se precipitaram. O que ele fez foi reconhecer o problema, e não fingir que não existia, como aconteceu no resto da Europa. Macron assumiu esse desafio. Ele confrontou os franceses com esse problema e buscou resolver com eleições.

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Na França, houve um envolvimento muito significativo para conter a extrema direita, ainda que ela tenha obtido também um resultado histórico. Se a extrema direita tivesse chegado ao governo, teria posto em causa todo o projeto da União Europeia. Minimizar essa ameaça é um erro tremendo.

De que maneira seria uma ameaça ao projeto europeu?

Se a extrema direita tivesse vencido na França, isso seria uma turbulência interna na UE. Nada ficaria em pé como antes. Todo o projeto da UE tem como base o eixo Paris - Berlim. A Europa se funda no que é uma aliança entre França e Alemanha. Se um desses dois deixar de estar comprometido com o projeto, isso significa que o projeto foi abalado em seus fundamentos. Isso tudo num momento em que o Reino Unido abandonou a Europa.

As três potências mundiais da Europa são fundamentais para que o projeto europeu se desenvolva. Com o Reino Unido fora, com a França nas mãos da extrema direita, é o edifício da UE que é abalado.

A Europa é o ator político mais declinante de todos, em termos geopolíticos. De todos os atores mundiais, o único que enfraqueceu foi a UE e em todas as dimensões.

Quando o senhor considera que esse processo começou?

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O declínio começou depois da crise financeira, de 2007. E se acentuou com a chamada crise dos refugiados. A Europa desempenhava um papel político específico no mundo. Éramos o ator no qual todos poderiam confiar. Nós defendemos o direito internacional, a carta da ONU, somos um ator pela paz. Somos o soft power do Ocidente, enquanto os EUA tinha o papel de ser o hard power.

É verdade que, depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa desempenhou um papel de ser o parceiro júnior dos EUA. Mas esse parceiro tinha um papel muito próprio, que era o de criar a confiança com países pelo mundo. A crise dos refugiados colocou isso em causa, ao revelar que a Europa tem uma face sombria que está sendo revelada de forma cada vez mais clara, principalmente com os nacionalismos, em especial vindo do Leste da Europa.

A Europa deixou de ter o significado que tinha antes para o mundo. Perdeu esse emblema de ser um ator político moderado e confiável, que respeita o Estado de Direito.

Isso afeta a imagem do Ocidente no mundo?

Antes, o Ocidente era acusado de querer expandir seu modelo de governança a todo o mundo, de levar a democracia. Hoje, no contexto atual, o Ocidente precisa defender essa cultura política no seu interior. Ela hoje está ameaçada na Europa, nos EUA.

O Ocidente está apavorado e precisa se defender internamente das ameaças contra a democracia que sempre defendeu. Esse pavor é uma novidade histórica desde a Segunda Guerra Mundial.

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Ao final da Guerra Fria, o Ocidente se apresentava como triunfalista e como se não houvesse um perdedor com o resultado da disputa entre as superpotências. O argumento é que outros povos teriam se beneficiado, pois foram libertados.

Trinta anos depois, o Ocidente está tentando defender a democracia e a liberdade em seu interior. Há um império, o dos EUA, que está ameaçado em sua capital. É uma das grandes novidades na política contemporânea. Não tivemos uma situação de um presidente que não reconhece uma derrota eleitoral. Aprendemos muitos quando escutamos o discurso dos perdedores.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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