Conselheiros de Trump querem ofensiva contra esquerdas na América Latina
O Projeto 2025, um plano criado por ultraconservadores dos Estados Unidos com apoio de mais de uma centena de conselheiros de Donald Trump, prevê uma ofensiva contra governos de esquerda na América Latina caso o republicano vença a eleição. Trump já disse que não tem "nada a ver com o Projeto 2025".
"Não li. Não quero ler, propositalmente. Não vou ler", falou Trump em debate presidencial em setembro, após Kamala Harris dizer que o ex-presidente estava ligado ao plano.
A meta do Projeto 2025 é financiar entidades e grupos contrários a movimentos sociais progressistas latino-americanos, condicionar recursos à promoção da ideologia conservadora e combater "ideias socialistas que atraíram a juventude" na região.
Para isso, a ideia seria usar a poderosa agência de desenvolvimento dos EUA, a Usaid, para usar os recursos da ajuda externa americana para financiar entidades que possam fazer oposição aos governos de esquerda no resto do continente. No total, o orçamento da entidade é de US$ 42 bilhões por ano.
No Palácio do Planalto, fontes confirmam ao UOL que uma das preocupações do governo de Luiz Inácio Lula da Silva é a atuação de uma eventual administração Trump para fortalecer grupos de extrema direita na América Latina e ampliar os focos de instabilidade regional.
O próprio presidente Lula chegou a declarar apoio à candidata democrata Kamala Harris. Em entrevista ao canal francês TF1+, Lula disse que "Kamala Harris, ganhando as eleições, é muito mais seguro de a gente fortalecer a democracia nos Estados Unidos".
O Projeto 2025 tem 920 páginas. Descreve ações concretas para, na prática, refundar o estado americano. A iniciativa é a concretização do esforço da extrema direita para estabelecer sua visão de governo e de sociedade.
Os autores não escondem: esperam que as propostas façam parte de um eventual novo governo Trump, caso o republicano vença as eleições na próxima semana.
A ideia começou a ganhar forma em 2022, quando a entidade ultraconservadora Heritage Foundation reuniu mais de cem organizações, entre elas algumas instituições que fazem campanha contra direitos de LGBTQI+ ou contra qualquer ação para garantir direitos reprodutivos. Pelo menos uma delas ainda mantém uma estreita cooperação com o bolsonarismo, com a senadora Damares Alves e outros movimentos de extrema direita pelo mundo.
Diante de uma lista de polêmicas, Trump tentou se distanciar do projeto e dizer que não estava envolvido. Mas pelo menos 140 envolvidos no plano tinham trabalhado com Trump.
Instrumentalização da ajuda externa para enfraquecer governos de esquerda
No documento, fica evidenciada a intenção dos conservadores de instrumentalizar a ajuda humanitária dos EUA para forçar sociedades a mudarem de linha ideológica. Segundo o texto, a administração de Joe Biden usou a Usaid para difundir uma "agenda cultural que promove o aborto, o extremismo climático, o radicalismo de gênero e intervenções contra o suposto racismo sistêmico".
Biden ainda foi acusado de adotar "políticas que contrariam os valores americanos básicos" nessa ações no exterior e ainda desvinculou a assistência dos EUA de exigências como reformas de livre mercado. Ou sejam a abertura desses mercados para bens americanos.
No Brasil, a Usaid atua há 50 anos, com um destaque importante para trabalhos de conservação da biodiversidade e ações na Amazônia. Mais recentemente, a agência atuou para financiar operações nas enchentes que afetaram diferente regiões do país.
Mas é a relação entre a ajuda americana para a região e a ofensiva contra as esquerdas que ficam evidenciadas no plano.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receber"A assistência externa dos EUA em todo o Hemisfério Ocidental foi projetada para responder às ameaças à segurança nacional que emanam da região, como o tráfico ilícito de drogas e armas; fluxos de imigração ilegal; terrorismo; pandemias; e ameaças estratégicas da China, Rússia e Irã", diz o texto, num reconhecimento explícito de que o dinheiro não é apenas uma ajuda ao desenvolvimento.
"Na última década, os Estados Unidos forneceram bilhões de dólares em assistência de segurança, humanitária e de desenvolvimento na América Central e nos Andes, incluindo US$ 1 bilhão em ajuda emergencial alimentar e não alimentar a milhões de refugiados venezuelanos que fugiram da ditadura de Maduro", disse.
O texto também diz que a Usaid é "sempre a primeira a responder a desastres naturais na América Central e no Caribe e emprega uma rede de especialistas dedicados na região para prestar essa assistência". "Durante a pandemia, os Estados Unidos forneceram milhões de doses de vacinas e outros tipos de apoio emergencial à saúde", indicou.
Vitórias eleitorais da esquerda incomodam
O que o plano ultraconservador aponta, porém, é que esse investimento não trouxe os resultados esperados. "Anos de ajuda externa não conseguiram trazer paz, prosperidade e estabilidade ao hemisfério. A pobreza, a falta de emprego e a agitação social levaram a vitórias eleitorais de esquerda do México ao Chile", disse.
"Esses regimes são hostis aos interesses americanos e à iniciativa privada, fomentam a corrupção, implementam políticas radicais que empobrecerão ainda mais seus povos e ameaçarão suas democracias, além de estarem mais abertos a estabelecer parcerias com a China comunista", alerta.
Uma ofensiva especial é dedicada às "cleptocracias autoritárias de esquerda em Cuba, Nicarágua e Venezuela", que "negam liberdades básicas a seus povos, reprimem violenta e impiedosamente qualquer dissidência, reprimem comunidades de fé e geram tanta miséria que centenas de milhares de seus cidadãos tentaram cruzar nossa fronteira sul nos últimos dois anos".
Há também uma crítica dura em relação à situação haitiana. "Nenhum governo recente fez qualquer progresso para reduzir o caos e o desespero no Haiti", disse.
Exigências
No documento, os ultraconservadores deixam claro o que esperam que Trump faça ao assumir o poder. A estratégia seria usar a Usaid para:
Concentrar seus recursos no fortalecimento dos fundamentos dos mercados livres, como direitos de propriedade claros e um judiciário que funcione, e na promoção de reformas trabalhistas e previdenciárias, impostos mais baixos e desregulamentação para aumentar o comércio e o investimento na região e com os Estados Unidos como o caminho genuíno para a estabilidade econômica e política.
Contestar as ideias socialistas que capturaram muitos dos governos da região e os jovens de suas nações.
Financie parcerias com o setor privado e apoie grupos da sociedade civil, incluindo centros universitários e think tanks que defendam ideias democráticas e a favor do mercado livre.
Assistência para criar um ambiente mais propício para atrair investimentos privados.
O próximo governo conservador deve reavaliar todos os programas de ajuda externa dos EUA para a América Latina e encerrar aqueles que não obtiveram resultados após anos de esforços.
América Latina é estratégica
O foco na América Latina não ocorre por acaso. O documento admite o papel estratégico da região.
"A América Latina é uma importante fonte global de energia e alimentos, o que gera uma renda substancial que pode financiar o desenvolvimento social e econômico interno", disse. "As nações do hemisfério compartilham uma vantagem natural e maciça de comércio e investimento geográfico devido à sua proximidade com os Estados Unidos, complementada por acordos de livre comércio", apontou.
Segundo o documento, os Estados Unidos continuam sendo o destino preferido dos latino-americanos para educação superior e oportunidades de negócios. "As diásporas bem-sucedidas nos Estados Unidos servem como poderosas pontes econômicas, culturais e políticas para todos os países da região", destacou.
Cotado para chefiar diplomacia de Trump percorre América Latina
Na ofensiva pela região, os ultraconservadores americanos têm até mesmo seu articulador internacional. Richard Grenell, que foi embaixador de Trump na Alemanha, é cotado para assumir a diplomacia americana caso o republicano vença.
Nos últimos meses, ele tem circulado pela América Central, promovido turbulências na Guatemala e tem acusado o governo Biden de estimular "ideias de esquerda" na América Latina. Ele é ainda apontado como o homem que tem trabalho para criar uma rede de líderes de extrema direita, incluindo o húngaro Viktor Orbán.
Ainda em 2018, numa entrevista a um site mantido pelos movimentos mais reacionários nos EUA, Grenell expressou grande entusiasmo com a onda de conservadorismo na Europa, dizendo que desejava "capacitar" os líderes do movimento.
"Há muitos conservadores em toda a Europa que entraram em contato comigo para dizer que sentem que há um ressurgimento. Quero muito capacitar outros conservadores da Europa, outros líderes. Acho que há uma onda de políticas conservadoras que estão se firmando por causa das políticas fracassadas da esquerda", disse, ao assumir seu cargo de embaixador.
Dois anos depois, ele era um dos convidados de Trump para uma recepção na Flórida para o então presidente Jair Bolsonaro.
O envolvimento de bolsonaristas também foi notado quando, no mês passado, grupos de extrema direita se reuniram em Buenos Aires para o Foro Madrid. No documento final do evento organizado por movimentos ultraconservadores de 15 países da região e da Europa, os participantes declararam seu apoio à eleição de Trump e alertaram para um "duro golpe" para a região se Kamala Harris vencer.
O evento foi montado pela Fundación Disenso, comandada pelo Vox, partido herdeiro do franquismo na Espanha. A entidade tem, em sua direção, o ex-chanceler brasileiro Ernesto Araújo.
No documento aprovado, o grupo ainda aponta para o "nexo" de Harris com a "esquerda radical" e diz que a Ibero-América é central para fazer "retroceder o socialismo".
"Reafirmamos a vontade de continuar a implacável batalha cultural pela defesa do Ocidente contra o marxismo cultural destrutivo e a engenharia social totalitária em todas as suas manifestações, seja o 'wokismo' [movimento ideológico que defende uma tomada de consciência e a intervenção face a questões de discriminação ou injustiça social], o progressismo ou o socialismo de qualquer tipo", diz o documento.
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