Jamil Chade

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Ucrânia e abalo no Hezbollah explicam queda de Assad, diz brasileiro na ONU

A queda de Bashar Al Assad é resultado do enfraquecimento do Hezbollah e da falta de apoio de Rússia e Irã ao regime de Damasco. A constatação é do presidente da comissão de inquérito da ONU sobre os crimes cometidos na Síria, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro.

Em entrevista ao UOL, o homem que liderou a apuração contra o regime de Bashar al Assad e aos demais crimes no país faz um apelo para que aqueles que estejam no poder hoje evitem uma retaliação contra minorias e que mostrem moderação e que rompam com o ciclo de violência que tomou a Síria desde 2011. Em treze anos, ele coletou mais de 10 mil entrevistas e depoimentos sobre a violência no país.

"O importante agora é convencer as novas autoridades a preservar as fontes, não retaliar contra as minorias", disse.

Além de sua entrevista, Pinheiro publicou um comunicado da Comissão de Inquérito da ONU que solicita que as novas autoridades "facilitem o acesso de agentes humanitários e de direitos humanos independentes, incluindo a Comissão, ao país, inclusive às instalações de detenção".

Para o brasileiro, todas as provas de crimes precisam ser protegidas. "Tanto os líderes da oposição quanto as lideranças do governo fizeram declarações iniciais indicando seu compromisso com a proteção da população civil, o que é encorajador. Seus atos devem agora corresponder às suas palavras", disse.

Para a Comissão liderada pelo brasileiro, os grupos que agora controlam grandes áreas têm a chance de "romper o ciclo destrutivo de pilhagem e saque que a Comissão documentou com frequência após as mudanças no controle territorial e o deslocamento em massa". "Suas lideranças devem tomar medidas imediatas para evitar saques e garantir a proteção das casas e dos bens deixados para trás pelas centenas de milhares de pessoas que foram deslocadas na semana passada", pediu.

Segundo eles, "ver prisioneiros sendo libertados após décadas de detenção arbitrária na infame prisão de Sednaya, nos arredores de Damasco, é uma cena que milhões de sírios não poderiam ter imaginado há poucos dias". "As atrocidades cometidas em Sednaya e em outros centros de detenção do Estado sírio devem ser esclarecidas e a busca pelas dezenas de milhares de desaparecidos da Síria deve continuar", afirmou a Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria.

"O povo sírio deve ter permissão para ver esse momento histórico como o fim de décadas de repressão organizada pelo Estado. Cabe àqueles que agora estão no comando garantir que tais atrocidades nunca mais se repitam dentro dos muros de Sednaya: nunca mais", disse Paulo Sérgio Pinheiro, presidente da Comissão.

Em todo o território rapidamente tomado por grupos armados não-estatais liderados pelo Hay'at Tahrir Al-Sham (HTS), os últimos dias viram a libertação de milhares de prisioneiros que passaram anos, ou mesmo décadas, de detenção incomunicável. "Isso deve trazer imenso alívio para os indivíduos libertados e suas famílias e oferece esperança àqueles que ainda aguardam notícias das dezenas de milhares de entes queridos desaparecidos", disse a Comissão.

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"Durante décadas, Sednaya e outras instalações de detenção infames foram sinônimos de medo, perda, sofrimento e crueldade. As celas onde os detentos sofreram maus-tratos estão agora abertas, assim como as câmaras de interrogatório onde eles foram torturados usando métodos cruéis que a Comissão documentou durante anos", disse.

Eis os principais trechos da entrevista:

Jamil Chade: O que representa a queda de Assad?

Paulo Sérgio Pinheiro: Representa uma mudança que levou treze anos para ocorrer. Em 2011, o que as potências ocidentais acharam que iriam fazer era derrubar Assad. Diziam que era questão de semanas, mas ele não caiu. Mas o que a queda dele hoje fica claro é que se superestimou a consolidação dele no poder.

Na verdade, na medida em que a Rússia, Irã e o Hezbollah foram enfraquecidos, ele não pode se sustentar.

Do ponto de vista das famílias, dos presos e desaparecidos, o que representa é algo semelhante a qualquer queda de ditadura. Não são apenas os anos de Bashar al Assad no poder. Mas também as décadas de autoritarismo na Síria.

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É sempre bom ver uma ditadura terminar.

Quais são os riscos, a partir de agora?

Até agora, as organizações não-estatais armadas têm guardado uma certa disciplina, se comparado com outros conflitos no interior da Síria. Espantosamente, está havendo essa disciplina. As minorias parecem não estar sendo hostilizadas. Houve uma missa em Aleppo e tenho acompanhado as entrevista do líder do Comitê pela Libertação do Levante. O que tenho visto é moderação.

O importante agora é convencer as novas autoridades é preservar as fontes, não retaliar contra as minorias.

De uma certa forma, não adiantou muito todos esses anos, que tratamos essa organização como terroristas, e na verdade as organizações de direitos humanos e as diplomacias precisam falar com todos. Hoje, estão todos desamparados.

Se olharmos bem, o Irã se retirou, a Rússia não pode vir à ajuda de Assad por estar na Ucrânia. Foi uma janela de oportunidade.

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Na Comissão de Inquérito, nós já tínhamos visto desde novembro um aumento da violência entre os grupos rebeldes e grupos apoiados pela Turquia. Foi um ensaio para o que está ocorrendo hoje.

A guerra na Ucrânia, portanto, pode ter sido decisiva?

A janela ocorreu principalmente diante do aprofundamento do combate das forças russas na Ucrânia, com a necessidade de destinar o material russo para a guerra contra Kiev. Isso ficou ainda mais claro depois que europeus e EUA permitiram que os ucranianos usassem alguns mísseis.

Acho que as demandas de material e de efetivos abriram a janela para essa organização síria pudesse agir.

Agora, também é importante ver o enfraquecimento do Hezbollah. Ficou provado que sem a presença das milícias iranianas, do Hezbollah e da força aérea russa, Assad não tinha nenhuma consolidação efetiva. Era ilusória. Sempre avisamos que a guerra não terminou. Ela acabou nas grandes cidades. Tem sido uma guerra contínua desde 2011.

Quem é que perde com a queda de Assad?

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A Rússia, de certa maneira sim. Ela estava legalmente na Síria. Na geopolítica, também perdem o Irã e o Hezbollah, que tinha sido bastante enfraquecido pelos ataques de Israel. Desde julho, foram mais de 111 ataques de Israel contra o Hezbollah.

E qual o papel de Europa e EUA?

Os europeus tinham fechado suas embaixadas em Damasco e ficaram sem saber o que estava ocorrendo. Não da para dizer que os EUA estavam por trás do que ocorreu. Eles consideravam essa organização como uma entidade terrorista.

Claro, quem ganham são os milhões de refugiados, as famílias dos presos. Calcula-se que dezenas de milhares de soldados sírios também morreram. De certa maneira, é um alívio, pois as Forças Armadas estavam em péssima situação.

É o evento que muda o mapa político da região?

Sou cético. Quem tem o sonho de uma mudança política é Israel, com a repressão, o genocídio em Gaza. A Síria teve um papel no passado de ser uma força de resistência às pretensões israelenses. Mas eles já tinham perdido essa condição há muito tempo.

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Agora, quem sai ganhando é a Turquia, que estava apoiando alguns dos rebeldes.

O que fazer agora com Assad?

Ele deve ter tido asilo em algum país que deu apoio a ele. Mas o que precisamos ver é como reagirá o Conselho de Segurança que, por anos, ficou desfalcado. A resolução sobre a transição pacífica na Síria jamais foi implementada. O Conselho não foi capaz de implementar nenhuma resolução.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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