Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A revolta dos ignorantes, bolsonarismo e o papel dos intelectuais
No início deste mês o deputado federal Daniel Silveira recebeu a medalha da Biblioteca Nacional. A medalha é dada tradicionalmente pela Biblioteca Nacional a pessoas que contribuíram para a literatura. A honraria causou estarrecimento no meio cultural porque como se sabe, Daniel Silveira, pouco afeito às práticas democráticas e alinhado com o projeto de destruição da cultura, vem promovendo uma série de violências simbólicas, como a quebra de uma placa que homenageava Marielle Franco, vereadora assassinada em 2018 — caso até hoje sem solução. Além disso, em abril deste ano, Daniel foi condenado a 8 anos e 9 meses de prisão por agressões e ameaças verbais a ministros da corte do Supremo Tribunal Federal. No dia seguinte, Bolsonaro publicou um indulto anulando a pena do deputado.
Em entrevista ao Globo, embora não saiba por que estaria recebendo a medalha, Daniel tentou justificar dizendo ter lido 832 livros, 21 livros por mês, o que daria, segundo seu próprio cálculo, uma média de 1,75 livros por dia. Disse também que seu livro favorito é "Política, ideologia e conspirações", dos historiadores Gary Allen e Larry Abraham. O livro é uma recomendação do astrólogo de extrema-direita Olavo de Carvalho.
Em sua fala, Daniel questionou "Quem considera eles intelectuais? Qual a relevância deles na sociedade?", referindo-se ao professor emérito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Antônio Carlos Secchin e o poeta e tradutor Marco Lucchesi, que se recusaram a receber a medalha, assim como família do poeta Carlos Drummond de Andrade, que também repudiou o nome de Daniel na lista dos homenageados.
O questionamento do deputado tem a ver com o imaginário social sobre os intelectuais: sujeitos reclusos em uma biblioteca e apartados do convívio em sociedade. Sujeitos ensimesmados produzindo teorias às quais só os eruditos e acadêmicos podem ter acesso, e sem nenhum tipo de impacto social prático. Vendo nessa perspectiva, num país em que mais 30% da população jamais comprou um livro na vida, segundo a pesquisa Retratos do Brasil, é natural que a figura do intelectual nesse contexto não tenha valor algum.
Entretanto, o anseio de desqualificar essa figura também tem a ver com a chegada dos influenciadores digitais nos últimos anos que, paulatinamente, tem, de certo modo, pautado opiniões e modos de viver. Não é à toa que Daniel Silveira, nesta mesma entrevista tenha dito que "Se colocarem no Twitter deles com 129 seguidores que é autor e escritor...Talvez eu saiba mais de literatura do que eles". É claro que a declaração vem acompanhada de boçalidade e desconhecimento do significa literatura. No entanto, não há como negar que o fenômeno da quantidade de seguidores tem pautado as dinâmicas sociais, conferindo maior importância de status na sociedade. O raciocínio é esse: quanto mais seguidores, mais poder para influenciar.
A questão é que o papel do intelectual, enquanto produtor de conhecimento e de análises, não tem, necessariamente, a função de influenciar as pessoas, muito menos influenciar na mesma velocidade que se espera numa postagem de 140 caracteres. Entrar nessa dinâmica barateia o pensamento e as análises mais profundas, como tem acontecido. Na verdade, podemos pensar que o intelectual é, em última instância, aquele que se pensa e pensa a sociedade ao seu redor. É aquele que tensiona e fricciona o senso comum e oferece outras visões. O intelectual cria condições para que os cidadãos possam, dentro das suas possibilidades e vivências, compreender com mais clareza questões complexas do seu tempo. Neste sentido, o intelectual tem, por assim dizer, uma dimensão pública que facilita o debate sem cair em maniqueísmos e esquemas simplistas.
Agora, é interessante pensar que mesmo que essas figuras bolsonaristas se esforcem para destruir a cultura, o conhecimento e os saberes científicos, existe o fetiche ou a necessidade de validação das instituições atacadas por eles mesmos. Parece que para uma revolta dos ignorantes é preciso ter o reconhecimento dessas instituições. Uma espécie de distinção social. No entanto, essa distinção tem mais a ver com o uso simbólico de medalhas ou honrarias, do que aquilo que de fato elas representam.
Ou seja, receber uma comenda da Biblioteca Nacional, para eles, tem o mesmo valor que qualquer outro tipo de premiação. Porque para os bolsonaristas não importa se a medalha já foi concedida ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Não importa saber que tal honraria é um reconhecimento de uma produção acadêmica e intelectual. Tal postura está no mesmo nível daqueles tantos integrantes do atual governo que já mentiram sobre seus currículos acadêmicos, ou aqueles que colaram adesivos imitando livros para sair no fundo das lives. Isto é, não importa ser estudioso, importa parecer que é. Como se esses elementos também validassem suas ignorâncias. A revolta dos ignorantes é uma revolta dos ressentidos. Uma revolta daqueles que optaram por um caminho raso, incipiente e vazio. E que veem na violência e no discurso de ódio a única forma de expressão possível para o abismo existencial em que se meteram.
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