Jeferson Tenório

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Opinião

'Se não descer, eu como': a resposta dos entregadores de app ao servilismo

Em julho deste ano, o entregador por aplicativo Pedro Roberto Pereira Junior decidiu gravar um vídeo nas redes sociais comendo o lanche de um cliente que se recusou a descer do apartamento para buscar a entrega na portaria. O vídeo viralizou em pouco tempo.

Dias atrás o jornalista esportivo Rica Perrone revelou, em um podcast, que discutiu e atirou um lanche contra um motoboy. O motivo, segundo o jornalista, seria porque o entregador não subiu até o seu apartamento para entregar o lanche.

Em abril deste ano, o entregador Max Angelo foi agredido pela ex-atleta e nutricionista Sandra Mathias. O caso ganhou grande repercussão, não só pela agressão em si, mas também pelos xingamentos com injurias raciais e a imagem emblemática de uma mulher branca batendo num homem negro com uma coleira de cão, que nos remete ao chicote, objeto de tortura conhecido durante a escravidão.

As agressões a entregadores de aplicativos têm se tornado comum no Brasil. A distinção racial e social no país é fruto do modo como as estruturas de exploração se organizam.

@uol O entregador Pedro Júnior viralizou após postar em seu TikTok um vídeo em que come lanche de um cliente que se recusou a descer para pegar o pedido. O motoboy inclusive cantou: "Se não descer, eu como mesmo". #tiktoknotícias #uol #riodejaneiro ? som original - uol

Historicamente as elites se acostumaram com a cultura da servilidade. Manter serviçais em situações precárias, com baixos salários e condições insalubres parece não ser o suficiente para que a cultura da servilidade seja posta em prática, pois além do trabalho precarizado, a elite precisa estabelecer uma distinção social sistemática para reafirmar os papéis sociais.

Dentro da cultura do servilismo, a relação senhor/serviçal precisa estar muito bem estabelecida e delimitada.

Ou seja, na mentalidade daquele que espera ser tratado como "senhor", descer para buscar um lanche na portaria do seu prédio pode ser considerado um rebaixamento nessa hierarquia.

Como se um mero ato de descer escadas ou pegar elevador pudesse igualá-lo ou aproximá-lo do entregador, ou que sua posição de "senhor" fosse colocada em xeque.

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Atitudes como a do jornalista Rica e da ex-atleta Sandra Mathias remontam um cenário que revela uma lógica servilidade e que, consequentemente, faz parte da herança escravagista que perdura até hoje. Ou seja, mesmo que este "serviçal" não more na mesma casa e não esteja sob sua tutela, mesmo que este não seja o "dono", "chefe" ou "patrão", mesmo que o serviçal não tenha nenhum vínculo, é necessário, para a satisfação dessa elite, tratá-lo como serviçal, mas com requintes de desumanização.

Segundo a Aliança Nacional de Entregadores de Aplicativos, quase 70% dos trabalhadores são negros, pobres e moradores de regiões periféricas, dados que dizem muito sobre o modo como esses entregadores são tratados, levando que consideração que o Brasil é um país extremamente racista.

Ao comer o lanche de clientes que não descem para pegar seus pedidos, o entregador Pedro Roberto dá uma espécie de resposta a cultura do servilismo.

Não deixa de ser uma espécie de resistência a um sistema que continua precarizando o trabalho. Talvez seja um modo de dizer: "Olha, eu tô sendo explorado, em condições precárias, mas não vou aceitar tudo". Talvez uma maneira de preservar alguma dignidade.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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