Censura ao livro de Ziraldo é visão equivocada do papel da literatura
A relação entre o leitor e a literatura é sempre um mistério. É difícil definir o que acontece quando lemos um livro, quais os efeitos de uma história sobre nós. Talvez não haja nada mais frustrante para quem é leitor do que recomendar um livro maravilhoso para alguém, e esse alguém não gostar da história.
A frustração vem porque queremos que o outro tenha a mesma experiência que tivemos ao ler. Os professores também são assim. Querem mostrar aos alunos o quanto determinado livro é bom, quantas coisas importantes podem ser tiradas dali.
Entretanto, nessa relação, cria-se a ilusão de que os livros são capazes de influenciar as pessoas diretamente. Um imaginário de que as histórias teriam o poder de induzir a fazer coisas exatamente como estão nas histórias. O que não é verdade.
Talvez na ficção isso seja possível. No livro "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes (1547-1616), por exemplo, o personagem, de tanto ler livros sobre cavalaria, decide ele mesmo ser um cavaleiro.
Já em "Madame Bovary", Gustave Flaubert (1821-1880) teve que se explicar na Justiça, sob a acusação de imoralidade em sua obra. No livro, Madame Bovary é uma mulher frustrada no casamento e que, após ler romances românticos, passa a ter casos extraconjugais.
O medo de que os livros possam influenciar as pessoas diretamente também está presente em "Fahrenheit 451" de Ray Bradbury (1920-2012), em que livros são incinerados para que a população não tenha acesso à leitura e, logo, ao pensamento crítico.
Na verdade, é uma visão que opera numa lógica simplista de causa e efeito. Muito comum para quem não tem intimidade com os livros. Justamente porque a literatura age num outro tempo. A literatura não impõe regras de condutas morais. A literatura não é a guardiã dos bons costumes.
O livro "O Menino Marrom", censurado recentemente em escolas do município de Conselheiro Lafaiete (MG), discute a importância da diversidade através de dois meninos. Mas para alguns pais desse município o livro estaria incentivando um pacto demoníaco, pois em dado momento os personagens decidem fazer um pacto de amizade, mas com tintas.
É certamente uma leitura equivocada do papel da literatura como um texto higienizado, com normas morais e educativas. Obviamente que a literatura nos educa, mas de forma mimética. Há sim, uma educação sentimental e subjetiva que nos ajuda a nos constituir como cidadãos. A literatura emula uma responsabilidade ética, mas jamais vai oferecer respostas diretas.
Para além do que já sabemos sobre o avanço de pautas ultraconservadoras no Brasil e no mundo, é muito comum que pais queiram livros que concordem com suas crenças morais. Livros que tragam algum tipo de ensinamento ou manual de boas maneiras. Pois isso, ajudaria, sobretudo, a manter o controle da criação de filhos.
Acontece que a literatura vai no caminho inverso: propõe a busca pela autonomia para que os filhos possam se tornar pessoas independentes, que possam questionar conceitos morais dos próprios pais. E talvez algumas famílias não estejam preparadas para isso.
Por isso, quando vou atrás de livros infantis e ou juvenis, sempre procuro aqueles que são menos óbvios, que não menosprezam a inteligência e a capacidade dos leitores. Livros que ensinem os jovens a fazer perguntas num mundo com tantas certezas.
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