Josias de Souza

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Opinião

Carta de Milei a Lula é o início de uma recomendável caída em si

Javier Milei prevaleceu na disputa presidencial da Argentina informando aos eleitores que detesta a realidade. A poucos dias da posse, marcada para 10 de dezembro, parece compreender que a realidade é o único lugar onde os 40% de argentinos empurrados para a miséria podem conseguir três refeições decentes por dia. A carta enviada por Milei a Lula marca o início de uma recomendável caída em si. Nela, a retórica encrespada da campanha foi substituída por um documento escrito que contém um alvissareiro aceno à cooperação entre vizinhos.

Entregue em mãos pela futura chanceler argentina Diana Mondino ao colega brasileiro Mauro Vieira, em Brasília, a carta de Milei anota a certa altura: "Sabemos que nossos países estão estreitamente ligados pela geografia e história e, a partir disso, desejamos seguir compartilhando áreas complementares, a nível de integração física, comércio e presença internacional, que permitam que toda esta atuação conjunta se traduza, de ambos os lados, em crescimento e prosperidade para argentinos e brasileiros".

O futuro governo Milei continua sendo uma incógnita. Mas a aparente moderação de uma retórica que privilegiava a ofensa a Lula e o desprezo pela parceria histórica com o Brasil estimula o raciocínio com hipóteses. Desde a mais otimista —na melhor das hipóteses, haverá na Casa Rosada um presidente que se esforçará para retirar a Argentina da cova econômica e social em que se encontra— até a mais pessimista —Milei continuará jogando terra em cima dos argentinos, às voltas com governantes que rodam como parafusos espanados há mais de sete décadas.

No caso do que espera a Argentina e parceiros como o Brasil com Milei no trono, a quantidade de hipóteses é vasta, já que ninguém sabe ao certo o que há dentro de um embrulho vendido com todas as armas de que dispõe o marketing político para seduzir um eleitorado em desespero. A melhor das hipóteses é que a autoimagem de salvador da pátria coincida com a fantasia do público que a comprou, e que a conjunção de ilusões produza algum proveito.

A pior das hipóteses é que, sendo apenas um produto eleitoral de sucesso, Milei inaugure na Argentina um governo-espetáculo do fascismo pós-moderno, incapaz de construir as pontes que levam um presidente minoritário no Congresso à maioria indispensável à conversão da propaganda radical impulsionada por meia dúzia de memes em projetos que garantam uma economia estável, uma educação de qualidade, uma saúde acessível e uma atmosfera de segurança. Sem isso, as mesmas mãos que elegeram logo estarão apedrejando o eleito. A impaciência tem pressa.

Milei não será propriamente um presidente, será um gestor de crises. Mesmo mantendo relações amistosas com países como Brasil e China, os dois maiores parceiros comerciais da Argentina, e apostando na concretização do acordo do Mercosul com a União Europeia, será difícil para o administrador da ruína atrair investimentos. Mas a insistência no desprezo às parcerias e um chute no balde do Mercosul transformariam a dificuldade num outro nome para o impossível. Daí a percepção de que a carta enviada por Milei junto com um convite para que Lula compareça à posse pode ser um relevante ponto de inflexão.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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