Milei demora a notar que não se desfaz uma crise criando outras
Javier Milei foi eleito presidente da Argentina em 19 de novembro cavalgando a raiva dos eleitores com a ruína econômica. Quando assumiu a Casa Rosada, em 10 de dezembro, sabia que o legado ruinoso de Alberto Fernández lhe cobraria um custo. Pela lógica, precisava trocar o semblante histriônico do ambiente eleitoral pela imagem da tranquilidade. Deu-se o oposto. Milei manteve a língua em riste. Em duas semanas, dedicou-se a fabricar armas para os opositores.
No segundo turno da disputa contra o ex-ministro da Fazenda Sergio Massa, as coisas ficaram fáceis para Milei. Tão fáceis que passou a campanha atacando a enorme vidraça da terceira maior inflação do mundo e empunhando a motosserra com a qual prometia podar os gastos públicos e a corrupção da "casta" política. Empossado, esqueceu de retirar o ódio do seu cardápio. Tornou-se um fornecedor de pedras.
No discurso de posse, Milei avisou: "Não há dinheiro". A marca de sua fala inaugural foi a franqueza. Sob aplausos dos devotos, declarou: "Prefiro contar a vocês a verdade desconfortável do que uma mentira confortável". Estimou que as medidas para interromper o "modelo de declínio" demorariam até dois anos para surtir efeito. Até aí, tudo estava dentro do script. O que estraga o enredo é a demora na desmontagem do palanque.
Milei revelou-se um mestre na criação de memes. Mas não sabe como converter a fantasia virtual em realidade prática. Pior: exibe uma disfuncionalidade cognitiva típica dos líderes que têm dificuldade para notar que não se desfaz uma crise criando outras.
Minoritário no Congresso, Milei comprou briga com os parlamentares alterando por meio de decreto de emergência três centenas de leis. Eleito com 57% dos votos, cutucou as ruas com o pé para ver se os argentinos que não votaram nele mordem. Embora não ignorasse que as manifestações são uma tradição na Argentina, ameaçou multar e excluir dos planos de assistência social as pessoas que participarem de protestos que resultem em bloqueios de estradas.
Milei promoveu uma maxidesvalorização da moeda. Com seu pacotaço, retirou o Estado da regulação do mercado de aluguel. Liberou administradoras de planos de saúde para salgar a conta da clientela. Flexibilizou a legislação trabalhista, facilitando as demissões. Eliminou as amarras artificiais dos preços. Impôs limites ao direito de greve e, simultaneamente, incendiou as corporações estatais ao colocar as empresas públicas na rota da privatização.
Mesmo quem considera as medidas draconianas inevitáveis avalia que conviria ao novo presidente levar a língua no cabresto. Milei dá de ombros. A quatro dias do Natal, manteve o discurso anticasta numa entrevista radiofônica. Em tom ameaçador, avisou: "Mais está por vir".
Um dos objetivos centrais das mudanças promovidas por Milei é a produção de um ambiente que atraia investimentos capazes de recolocar a economia da Argentina na rota da prosperidade. O diabo é que, para tornar os negócios atrativos, o governo precisaria fornecer paz social, estabilidade política e segurança jurídica. No momento, as ruas roncam, o decreto emergencial enfrenta questionamentos judiciais e o Legislativo se equipa para impor derrotas ao governo.
Para complicar, o horizonte de 24 meses esboçado por Milei como limite para que suas medidas se revelem eficazes foi turvado por sacrifícios de curtíssimo prazo. Os argentinos viram o preço da carne subir 73%. A conta da gasolina e do gás saltou 60%. O abacate ficou 51% mais caro. A abobrinha subiu 140%. Nesse ritmo, os eleitores de Milei não demoram a aderir às vaias e à sinfonia de panelas, convertidas prematuramente em trilha sonora do governo recém-eleito.
Num regime presidencialista, o rosto da crise é o semblante de quem ocupa o trono, não o do antecessor. O espírito do cachorro Conan, conselheiro do novo inquilino da Casa Rosada, logo informará ao dono que a crise na Argentina ganha rapidamente a cara de Milei.
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