Josias de Souza

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Opinião

Na anatomia do golpe, militares oscilam entre as leis e o abismo

O golpe militar de 1964 fará aniversário de 60 anos daqui a duas semanas. Quando João Goulart foi deposto, o general Marco Antonio Freire Gomes estava na bica de completar sete anos de idade. O brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior e o almirante Almir Garnier Santos eram duas crianças com quatro anos incompletos.

Em 2022, o trio comandava o Exército, a Aeronáutica e a Marinha quando Bolsonaro tramou arrastar as "minhas Forças Armadas" para fora do quadrado constitucional. Freire e Baptista refugaram. Garnier colocou-se à disposição. O golpe falhou. Mas o país nunca chegara tão perto da ruptura desde a redemocratização.

Os depoimentos colecionados pela Polícia Federal dão à história do ocaso da Presidência de Bolsonaro uma aparência de dossiê criminal. No processo de documentação das culpas e omissões, potencializou-se a percepção de que os militares estavam presos à Constituição por grilhões de barbante.

Freire Gomes e Baptista Júnior ajudaram a PF a colocar Bolsonaro e o alto-comando do golpe na fila do patíbulo do Supremo. Apertaram os nós nas gargantas do almirante Almir Garnier e dos generais Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sergio Nogueira. Sobrou corda para o paisano Anderson Torres.

A colaboração rende a Freire e Baptista tratamento diferenciado. Falaram aos inquisidores federais como testemunhas. Investigados, Bolsonaro e suas fardas de estimação foram compelidos a silenciar para driblar a autoincriminação. A despeito da distinção, quem sabe ler nas entrelinhas vê nas falas do general e do brigadeiro omissões incompatíveis com o figurino de heróis da resistência.

Batista contou aos investigadores que, numa das reuniões em que Bolsonaro expôs minutas golpistas aos comandantes, Freire ameaçou prender o capitão se ele atentasse contra a democracia. Ao depor, o general não mencionou a disposição de dar voz de prisão ao chefe. Mas disse ter advertido Bolsonaro sobre o risco de responsabilização penal caso tentasse impedir a posse de Lula.

Freire soou menos enfático quando teve a chance de mostrar à PF, com ações efetivas, o seu apreço pela legalidade. Há no roteiro do golpe, por exemplo, uma carta de oficiais da ativa instando o general a aderir à conspiração. Os sublevados anotaram: "Covardia e injustiça são as qualificações mais abominadas por soldados de verdade".

Indagado, o ex-comandante disse ter tomado conhecimento da carta. O que fez? Freire disse ter ordenado a identificação dos autores e a adoção de "providências cabíveis". Não citou nomes. Tampouco especificou as punições. Nem sinal de prisão. Ficou no ar o receio de que o Exército acorberta sublevados impunes.

Outro ponto obscuro do depoimento do general Freire envolve o também general Estevam Theofilo de Oliveira. Ele chefiava o estratégico Coter, Comando de Operações Terrestres do Exército. A PF exibiu ao depoente mensagem capturada no celular do delator Mauro Cid. Nela, o então ajudante de ordens avisou ao chefe do Exército que Bolsonaro chamara Theofilo para uma conversa no Alvorada em 9 de dezembro de 2022.

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Freire confirmou o recebimento da mensagem. Disse que não tinha ciência da presença do subordinado no Alvorada. Declarou ter ficado "desconfortável com o episódio". Curiosamente, teve um súbito lapso de memória ao declarar durante a inquirição que "não se recorda se Theofilo lhe reportou posteriormente o conteúdo da conversa que teve com Bolsonaro". Além de dar de ombros para a quebra da hierarquia, Freire acompanharia Theofilo num par de conversas adicionais com Bolsonaro.

Não foram diálogos triviais. O próprio Freire informou à PF, em resposta a uma pergunta sobre a importância estratégica do setor chefiado por Theofilo em caso de implementação do decreto de ruptura institucional, que o Coter tem a atribuição de coordenar o preparo e o emprego da Força Terrestre. Provê recursos para operações do Exército. Quer dizer: caso o golpe ultrapasse a fase da tentativa, caberia ao general Theophilo fornecer as tropas.

No depoimento do brigadeiro Baptista, um dos trechos mais eloquentes foi o relato de um encontro dos comandantes das três Forças com o então ministro da Defesa, general Paulo Sergio Nogueira. Deu-se em 14 de dezembro de 2022, apenas cinco dias depois da primeira conversa de Bolsonaro com o general Theophilo. O ministro expôs a Freire, Baptista e Garnier uma das versões da minuta do golpe.

No relato que fez à PF, Baptista disse ter perguntado a Paulo Sérgio: "Esse documento prevê a não assunção do cargo pelo novo presidente da República?". O ministro permaneceu em silêncio. O chefe Aeronáutica informou aos investigadores que saiu da sala. Detalhista, declarou que minuta golpista ficou sobre a mesa. Freire também se recusou a analisar a minuta.

O destemor cívico e o zelo institucional de Freire e Baptista esmaeceram quando seus inquisidores questionaram sobre as razões que levaram as Forças Armadas a retardar a divulgação do relatório da comissão de fiscalização militar que atestou a inexistência de fraudes no sistema de votação eletrônico.

O relatório foi concluído antes do primeiro turno, realizado em 31 de outubro de 2022. Mas só foi divulgado em 10 de novembro. Por quê? Nos mesmos depoimentos em que soaram categóricos ao assegurar que avisaram a Bolsonaro sobre a inexistência de fraudes nas urnas, Baptista e Freire recorreram à desconversa.

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O brigadeiro disse à PF que "ouviu dizer que houve uma determinação para não divulgar". Entretanto, afirmou que não recordava "quem teria falado sobre o pedido para atrasar a divulgação do relatório." Na pergunta formulada a Freire, a PF foi ao ponto. Indagou ao general se conhecia o motivo de Bolsonaro não ter autorizado divulgação do relatório de fiscalização do sistema eletrônico. E o general: "Não sei informar". Limitou-se a dizer que "a divulgação cabia ao Ministério da Defesa".

Houve mais e pior: na nota em que divulgou os dados, depois do primeiro turno, o então ministro Paulo Sérgio injetou uma observação marota: "Embora não tenha apontado, [o documento] também não excluiu a possibilidade de existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022". Inquirido a respeito, Freire disse apenas não ter participado da elaboração da nota. De novo, declarou que não sabia se havia digitais de Bolsonaro no texto.

O depoimento de Freire contém obscuridades também no trato com o bolsonarismo que pedia intervenção militar na porta do QG do Exército. Por que não desmobilizou os acampamentos?, quis saber a PF. O general sustentou que "não havia suporte jurídico [...]. Nunca houve ordem judicial para a remoção."

Nas páginas do inquérito da PF, o Exército e a Aeronáutica aparecem no extremo oposto da Marinha. Mas não foi sempre assim. Ao depor à PF, Freire e Baptista foram categóricos ao apontar a adesão de Garnier ao golpismo. Entretanto, em 11 de novembro de 2022, apenas um dia depois da divulgação da nota ladina do ministro da Defesa sobre a fiscalização das urnas, o general e o brigadeiro se juntaram ao almirante numa nota de teor igualmente esquisito.

Endereçada "às instituições e ao povo brasileiro", a nota assinada por Freire, Baptista e Garnier dizia que as Forças Armadas, "sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história", têm "compromisso irrestrito e inabalável com o povo brasileiro, com a democracia e com a harmonia política".

Sem mencionar o nome de Alexandre de Moraes, malhado no Alvorada e na porta do Quartel General do Exército, os comandantes condenaram na nota a ação de indivíduos que "alimentem a desarmonia na sociedade". Enigmáticos, realçaram que o país possuía instrumentos legais para solucionar "possíveis controvérsias".

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No mesmo dia em que a nota conjunta dos comandantes militares ganhou o noticiário, o delator Mauro Cid enviou áudio a Freire Gomes. Nele, enalteceu a importância da nota para a "manutenção e intensificação" dos protestos em frente aos quarteis e "o deslocamento para o Congresso, STF e Praça dos Três Poderes."

A PF exibiu o conteúdo do áudio de Cid para Freire, que confirmou ter recebido a mensagem. Atribuiu a visão expressada pelo ajudante de ordens de Bolsonaro a uma interpretação "equivocada" do texto. Alegou que o objetivo da nota dos comandantes seria "passar uma mensagem de pacificação". Desejava-se, de resto "mostrar que manifestações não deveriam ocorrer nas instalações militares e sim no Poder Legislativo."

A essa altura, seria preciso invadir a memória de Freire, Baptista e Garnier para saber o que pretendiam com a nota intempestiva. Mas não há entre os resultados obtidos pelo texto nada parecido com pacificação. Ao contrário. Dali a um mês, no dia da diplomação de Lula no TSE, irrompeu no centro de Brasília uma violência coordenada, com queima de ônibus e carros. Dias depois, a PF desbaratou um plano que resultaria na explosão de um caminhão de combustível nas proximidades do aeroporto de Brasília.

Ficou entendido que o acampamento que o Exército se abstivera de desmobilizar não era um ninho de patriotas, mas uma usina de crimes. Os fatos que se sucederam à nota dos comandantes foram prenúncios do que estava por vir. Lançada num caldeirão que incluía a contestação de Bolsonaro às urnas, o texto dos comandantes das Forças Armadas compôs o magma vulcânico que explodiu no 8 de janeiro.

Imaginou-se que as duas décadas de ditadura que sobrevieram à deposição de João Goulart tivessem ensinado alguma coisa. Mas Bolsonaro demonstrou que a única coisa que o ser humano aprende com a história é que certos seres não aprendem nada da história.

Nos seus depoimentos, Freire e Baptista retiraram dos seus ombros o peso do golpismo desabrido. Enfiaram a conspiração nas mochilas de Bolsonaro e seus cúmplices. A resistência rendeu-lhes ataques dos golpistas. O general Braga Netto pespegou no ex-amigo Freire a alcunha de "cagão". Incitou a milícia digital bolsonarista a hostilizar Baptista e a família dele.

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Disseminou-se na PF e no Supremo a impressão de que, ao fornecer os pregos que faltavam para fechar o caixão de Bolsonaro, os ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica dissiparam a suspeita de omissão que ronda suas biografias. Em reforço à tese, Baptista disse em seu depoimento que a tentativa de golpe "possivelmente teria se consumado" se o colega do Exército avalizasse a minuta golpista de Bolsonaro.

O problema é que os delegados da PF não perguntaram a Freire e Baptista por que deixaram de denunciar a trama golpista de Bolsonaro assim que tomaram conhecimento da movimentação. Ou por que optaram por levar os lábios ao trombone apenas depois que a delação de Mauro Cid tornou impossível negar tudo o que estava na cara.

O retrato de um período da história é o resultado da análise de tudo o que sobra para ser desenterrado muitos anos depois. No futuro, quando a arqueologia historiográfica fizer suas escavações à procura de sinais que ajudem a entender as quase seis décadas que separam o golpe de 1964 da conspiração bolsonarista de 2022, encontrará evidências de que o Brasil voltou a flertar com o impensável porque as Forças Armadas reagiram à insensatez de Bolsonaro oscilando entre o legalismo e o abismo. Ainda há tempo para uma contrição institucional dos militares. Mas a demora substitui a autocrítica pela autopsia.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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