Câmara volta a flertar com o fundamentalismo antiaborto
Ninguém deveria cometer o mesmo erro duas vezes, pois a possibilidade de escolhas, em matéria de equívocos, é inesgotável. Em junho, uma reação das ruas e das redes sociais forçou a Câmara a congelar a apreciação de projeto de lei equiparando o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio. Nesta quarta-feira, os deputados voltaram a flertar com o obscurantismo na Comissão de Constituição e Justiça.
Por 35 votos a 15, o colegiado aprovou proposta de emenda constitucional que proíbe qualquer tipo de aborto no país, mesmo nos casos em que a lei autoriza. Desde 1940, o Código Penal permite o aborto em casos de estupro ou quando há risco de morte para a mãe. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal autorizou também o aborto de fetos com má-formação do cérebro, os anencéfalos. A emenda da CCJ transforma tudo em letra morta.
A proposta congelada em junho, de autoria do deputado-pastor Sóstenes Cavalcante, já era uma aberração. A mulher estuprada que recorresse ao aborto com 22 meses de gestação estaria sujeita a uma pena de seis a 20 anos de cadeia -duas vezes maior que a pena máxima reservada ao estuprador, de dez anos. A emenda constitucional que avançou na CCJ, apresentada pelo ex-deputado Eduardo Cunha em 2012, é ainda mais tétrica, pois criminaliza indistintamente modalidades de aborto legal, asseguradas às mulheres há mais de oito décadas.
Num estudo de 2023, o Ipea estimou que ocorrem no Brasil 822 mil casos de estupro por ano. Seis em cada dez mulheres estupradas são crianças com menos de 14 anos. Pesquisa Datafolha divulgada em junho revelou que 66% dos brasileiros são contrários ao projeto que transforma em homicidas as mulheres e crianças estupradas que abortam os fetos indesejados após a 22ª semana de gravidez. Contra esse pano de fundo, a reincidência da Câmara no erro não é apenas uma burrice. O novo flerte com o retrocesso é inaceitável.
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