Lira faz pose de solução, mas é parte do problema das emendas
No gogó, Arthur Lira e o centrão apoiam o pacote fiscal de Fernando Haddad. Na prática, o imperador da Câmara e seu grupo político se dispõem a aprovar os cortes de despesas propostos pelo governo, desde que ninguém ouse mexer no pirão das emendas parlamentares. O Supremo Tribunal Federal interveio no jogo. Abespinhado com a intervenção, Lira passou a operar no modo chantagem.
O chefe da Câmara veio à boca do palco nesta quarta-feira para avisar que, no momento, o Planalto não dispõem de votos nem mesmo para aprovar o regime de urgência que colocaria o pacote fiscal no primeiro lugar da fila de votações. Atribuiu a debilidade política de Lula à "instabilidade", "ansiedade" e "turbulência" provocadas pelas travas que o ministro do Supremo Flávio Dino impôs ao condicionar o pagamento das emendas à identificação dos padrinhos das verbas e da destinação dos gastos.
Foi como se Lira intimasse Lula a pressionar Dino, visto no Congresso como líder do governo no Supremo. O diabo é que o despacho do ex-ministro da Justiça de Lula foi avalizado pelo plenário da Suprema Corte. O chefe da Câmara sustenta que as togas legislaram, invadindo a competência dos parlamentares. Alega que o Congresso acaba de aprovar uma lei regulamentando o pagamento das emendas. Coisa sancionada por Lula.
Nessa versão, a transparência e a rastreabilidade da liberação das verbas, exigências constitucionais, já estariam garantidas. Se houver desvios, disse Lira, há os órgãos de controle "para tomar conta." Conversa mole. Decisões judiciais devem ser cumpridas. Aos contrariados há o caminho do recurso. De resto, o debate sobre a alegada extrapolação do Supremo faria mais nexo se a pregação de Arthur Lira não esbarrasse na lógica e nos fatos.
O Congresso controla algo como 24% do Orçamento federal. Entre 2019 e 2024, as emendas parlamentares custaram ao contribuinte R$ 186,3 bilhões. Intimado a revelar os autores e o caminho percorrido pelas verbas, o Congresso respondeu ao Supremo que seria "impossível" recompor os dados. Parte do dinheiro saiu pelo ladrão. Lira é protagonista de um escândalo lapidar. Destinou emendas à compra de kits de robótica para escolas alagoanas que não dispunham de estrutura mínima.
A Polícia Federal entrou na parada. Identificou desvios de R$ 26 milhões. O envolvimento do presidente da Câmara levou a encrenca para o Supremo. Ali, Gilmar Mendes, uma toga amiga, enterrou provas vivas, sepultando o inquérito numa canetada. Desmoralizou-se a atuação dos órgãos de controle.
O cinismo de Lira ganha a aparência de escárnio quando ele adorna sua pose austera com críticas aos programas sociais do governo. "Há uma falta de filtro em alguns ministérios", disse o soberano da Câmara. Caprichou no latim ao classificar o Bolsa Família como um benefício "ad eternum" (para a eternidade).
Lira insinuou que o programa é um desestímulo ao trabalho. Contou que, ao participou da inauguração de uma fazenda de celulose da empresa Suzano, verificou que parte da mão de obra era estrangeira, pois há dificuldade de encontrar trabalhadores brasileiros.
Por mal dos pecados, o grosso do pacote concebido para ajustar as contas nacionais concentra-se na lipoaspiração de políticas públicas destinadas aos brasileiros pobres, sem voz no Legislativo. Foram passadas na faca, por exemplo, despesas com o salário mínimo, o abono salarial e verbas educacionais do Fundeb. Os benefícios do Bolsa Família e as pensões para idosos e deficientes do BPC terão regras mais restritivas. Estima-se uma economia de R$ 71,9 bilhões em dois anos.
Nada de cortes nos R$ 50 bilhões das emendas de deputados e senadores. Nenhum talho nos chamados gastos tributários, que privam a Receita Federal de recolher os cerca de R$ 520 bilhões que mimam os contribuintes privilegiados que compõem uma tribo com voz no Congresso.
Arthur Lira fala muito. Mas silencia sobre a ausência da oligarquia parlamentar e da plutocracia empresarial no rol dos sacrificados pelo ajuste. Sua chiadeira seletiva levou o governo a prometer a liberação de R$ 8 bilhões em emendas. A exigência de abertura do cofre como condição para aprovar o enxugamento de despesas potencializa a percepção de que a democracia brasileira não é um regime para amadores.
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