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Ela viveu com um matador do Bope; agora na mira da Justiça, conta o que viu
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O ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega levantou agitado nas primeiras horas de 22 de janeiro de 2019. Viu mensagens no celular e apressou-se para acordar a companheira de quase uma década.
"Julia, deu merda. Saiu prisão para mim no Rio", disse à mulher.
O Ministério Público do Rio de Janeiro e a Polícia Civil deflagraram naquele dia a Operação Intocáveis. Adriano e mais 12 milicianos foram denunciados por uma série de crimes —de grilagem de terras a extorsão e cobrança de taxas abusivas, intimidação e assassinatos.
Adriano teve a prisão decretada pela Justiça, mas ninguém o encontrou: ele e Julia Lotufo estavam em Sauípe (BA) de "férias". E lá o casal permaneceu incomunicável por mais dois meses —ele mandou a jovem desligar o celular, proibiu-a de falar com a família e, mais tarde, a obrigou a voltar ao Rio.
Ali se encerrava de vez a imagem de "herói" que Adriano tanto tentou cultivar publicamente como "caveira" da tropa de elite da polícia carioca.
A caçada transformaria a vida de quem estava ao seu redor. Em especial, a de Julia, que permaneceu ao lado dele até horas antes de a polícia encontrá-lo um ano depois, em 2020.
Adriano acabou morto por forças policiais da Bahia no dia 9 de fevereiro daquele ano, durante o cerco montado para capturá-lo. Nos dias seguintes, muita gente passou a brigar por sua herança, e o Ministério Público do Rio abriu uma investigação para acompanhar o imbróglio.
Julia então se tornou alvo e, um ano depois, em março de 2021, foi formalmente acusada de participar da organização criminosa do companheiro morto e de lavagem de dinheiro.
"Essa imagem de 'primeira-dama do crime' dá um sentimento de que você não é nada. Cada um pode fazer o que quiser", queixa-se Julia ao UOL. Ela diz que, depois da perda do companheiro, "caiu o véu cor-de-rosa".
Ela passa os dias aguardando a sentença de seu processo em primeira instância. No início do ano, o caso ganhou um novo juiz na Vara Criminal Especializada do TJ-RJ, o magistrado Richard Robert Fairclough. Todas as etapas já foram cumpridas. Falta só a decisão.
Julia se separou recentemente do empresário Eduardo Vinicius Giraldes Silva, com quem se uniu após a morte de Adriano, e diz ter pouco tempo para qualquer coisa que não seja cuidar da mãe, que trata um câncer.
Parte da mágoa da viúva é se ver sozinha enfrentando o Judiciário. A mãe de Adriano, Raimunda Veras Magalhães Nóbrega, e a ex-mulher dele, Danielle da Nóbrega, passam longe da Justiça, mesmo que outra investigação, a de rachadinha no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), indicasse uma pizzaria tocada por Raimunda como lugar onde Adriano lavava dinheiro.
Julia concordou em contar sua versão da história à reportagem, mas pediu que o UOL omitisse detalhes de sua aparência e o lugar onde está vivendo. Ela teme retaliações de antigos inimigos de Adriano.
"Estou envolvida no contexto de um processo milionário e hoje me encontro nessa situação. Minha realidade é totalmente avessa àquilo, né? Sem trabalho, grana, nenhum suporte para viver e para trabalhar", conta.
Testemunha de um jogo duplo
Sentada num sofá creme, em um quarto de hotel, Julia conversou por três horas com a reportagem. Chegou de jeans e uma blusa, vestida inteiramente de preto, e falou sobre a vida que levou com o ex-capitão do Bope.
Já antes de ser expulso da PM, em 2014, Adriano se afundou no crime fazendo jogo duplo. Dividia o expediente de policial com máfias do jogo do bicho carioca. Foi no início dessa ascensão, uma década antes, que Julia conheceu o futuro marido, que viria que a tornar conhecido como um dos maiores matadores do Rio,
Ao repassar sua trajetória, ela indica o momento em que tudo mudou em sua vida. Foi em um fim de semana qualquer de 2011, quando a apresentaram a um então capitão da PM chamado Adriano.
O encontro ocorreu em um bar da antiga cervejaria Devassa, na Barra da Tijuca. Julia tinha 19 anos. A jovem de 1,74 m impressionava pela beleza. Era atlética, gostava de bike, natação e tinha diferentes planos na vida.
Nascida no Rio, a caçula dos quatro filhos do casal Luís e Scheila Lotufo passou os primeiros anos com a família em um sítio em Paty do Alferes, no interior fluminense.
Os Lotufo voltaram à capital quando ela tinha oito anos e se instalaram em um apartamento no Méier, na zona norte. Segundo Julia, os pais eram anarquistas, não gostavam de política e também não eram religiosos. "Gosto da doutrina espírita, de budismo, xamanismo", conta.
O pai abriu um bar dentro do Circo Voador, tradicional casa de shows carioca. Mais tarde, teve outro na Fundição Progresso. Daqueles tempos ela guarda uma foto em que exibe, sorridente, uma rosa que ganhou do cantor Erasmo Carlos.
Julia chegou a iniciar o curso de direito na Faculdade Estácio de Sá. Depois, mudou para produção cultural na Cândido Mendes. Até cogitou fazer concurso para a Polícia Militar, mas nada disso foi adiante.
A vida sofreu uma grande reviravolta em 2010, quando o pai morreu após complicações decorrentes de um procedimento médico. Todos na família precisaram começar a trabalhar. Meses depois, ela esbarrou em Adriano no bar.
Nascia ali um relacionamento que terminou prematuramente dois meses depois: um amigo de Adriano contou a ela que o policial, na verdade, era casado e seria pai.
À época, Danielle da Nóbrega, a mulher de Adriano, já estava registrada como funcionária do gabinete de Flávio na Alerj. Ela, porém, não trabalhava. Foi funcionária fantasma por dez anos.
Elos com os Bolsonaro
Segundo Julia, Adriano guardou por anos um vídeo de 2005 com o momento em que Jair e Flávio Bolsonaro lhe entregaram a Medalha Tiradentes na cadeia. Ele e outros PMs haviam sido detidos acusados de matar o guardador de carros Leandro dos Santos Silva.
Naquela época, Adriano já respondia por homicídio e extorsão, mas ainda era casado com Danielle. Para os Bolsonaro, Adriano era uma vítima da situação, e a medalha acabou o ajudando no processo —era uma espécie de "prova de boa conduta" na polícia.
Além de um cargo para a primeira mulher, a boa relação com o clã Bolsonaro rendeu uma outra nomeação para a mãe de Adriano, Raimunda. Ambas eram funcionárias fantasmas no gabinete de Flávio Bolsonaro no período em que ele foi deputado estadual.
Segundo investigação, chegaram a entregar R$ 203 mil a Fabrício Queiroz, apontado como operador do esquema de rachadinhas. A conta bancária de Queiroz também recebeu R$ 69,2 mil em transferências ou cheques da pizzaria de Raimunda e mais R$ 91,7 mil em depósitos não identificados de uma agência localizada na mesma rua do restaurante no bairro Rio Comprido, zona norte da capital fluminense.
A reportagem apurou que esse repasse a Queiroz era como Adriano devolvia a parte do dinheiro da rachadinha que Danielle recebia do gabinete.
A ex-mulher de Adriano devolveu apenas 19,3% do que recebia, nas contas do MP. As transferências serviam como complemento. O dinheiro de Danielle seria uma espécie de mesada. Adriano queria que ela tivesse um emprego formal para um dia se aposentar e não depender mais dele.
Adriano: de PM a bicheiro
Três anos depois daquele primeiro encontro no bar, Julia e Adriano, então já separado de Danielle, se reaproximaram.
Nesse meio-tempo Julia deu à luz uma menina, fruto de seu relacionamento com o professor de jiu-jítsu Rodrigo Bittencourt. Ao saber que estava separada e tinha voltado a viver com a mãe no Méier, Adriano telefonou e pediu para encontrá-la.
"Ele me chamou para almoçar no restaurante da mãe, no Rio Comprido. 'É do lado de onde você trabalha', ele falou." O restaurante, que Raimunda tinha em sociedade com Adriano, se tornaria, adiante, o foco da investigação sobre as rachadinhas.
Julia e Adriano decidiram morar juntos em 2016 no condomínio Floresta, em Rio das Pedras, onde também viviam integrantes do chamado Escritório do Crime, milícia que atua na zona oeste do Rio.
Ela diz que não sabia dos detalhes do envolvimento de Adriano com o crime —saberia apenas que ele era bicheiro. Para ela, o dinheiro que ele ganhava viria das máquinas caça-níquel.
"Ele não vivia de matar gente. Ele vivia da contravenção. O que sempre pagou as minhas contas, e eu tinha consciência, era o jogo do bicho. Sentia que as pessoas temiam ele, mas não que isso [os assassinatos] era uma profissão.
Julia afirma que está proibida de falar sobre a máfia da contravenção, mas, quando tentou fazer delação premiada em julho de 2021, relatou ao MP que odiava viver no condomínio justamente pelo "convívio" com milicianos. "Não queria que minha filha crescesse ali", afirmou ela, em depoimento.
Julia chegou a dar detalhes sobre um assassinato pelo qual Adriano cobrara R$ 500 mil, além de outros crimes em que o companheiro esteve envolvido —coisas que teria descoberto ao mexer no celular dele.
Também relatou a existência de um cemitério clandestino no haras que Adriano possuía em Guapimirim (RJ) e ainda outro local de desova de corpos em Campinho, na zona oeste do Rio.
Em janeiro de 2017, Julia e Adriano foram viver em um apartamento na Barrinha, em frente à 16ª DP.
A vida dos dois, porém, ganharia outro rumo quando começaram a surgir notícias sobre o esquema de rachadinhas envolvendo a família, Fabrício Queiroz, amigo de longa data de Adriano, e Flávio Bolsonaro.
Julia recorda que, no início, Adriano chegou a fazer piada com a mãe. "Ele não estava foragido ainda e brincava com a mãe dele: 'tá famosa'."
Apesar do tom de chacota, Adriano se preocupou quando, em janeiro de 2019, a relação dele com a família Bolsonaro foi descoberta —segundo Julia, ele se sentia culpado. "Ele falava que aquele escândalo todo ia atrapalhar Bolsonaro."
Julia confessou lavagem de dinheiro
Julia foi acusada de associação criminosa e lavagem de dinheiro pouco mais de um ano depois da morte de Adriano, em função dos bens e patrimônio deixados por ele.
Ficou 40 dias foragida e teve a prisão decretada, alvo de um mandado de prisão pela Operação Gárgula em março de 2021.
Ela contou que estava em Brasília quando a operação para prendê-la aconteceu. Depois, passou um tempo em um flat em São Paulo aguardando um habeas corpus que saiu em abril.
A grande preocupação dela era a filha de dez anos, já que o pai da menina, Rodrigo Bittencourt, também era alvo da operação, acusado de lavagem de dinheiro e agiotagem.
Com o habeas corpus e monitorada pela Justiça, Julia e seus advogados tentaram fazer um acordo de colaboração com o MP, passando informações sobre os crimes financeiros do miliciano.
Julia assumiu ter participado da lavagem de R$ 200 mil na Lucho Comércio de Bebidas Ltda. O dinheiro era obtido por Adriano em crimes da milícia em Rio das Pedras e via máfia da contravenção.
Nos documentos, Julia aparece como uma das sócias do restaurante e admite que a ideia era abrir uma unidade na capital e usá-la ilicitamente.
Esse restaurante, contudo, nunca abriu as portas, e os planos não saíram do papel. Mesmo assim, o MP denunciou Julia. Ela se vê como inocente, mas se nega a falar da proposta de delação à promotoria.
O que Julia diz saber sobre caso da rachadinha
Antes de fazer a delação sobre os crimes financeiros cometidos com o ex-marido, Julia procurou o MP com a intenção de falar sobre o esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro, que envolvia tanto a mãe como a ex-mulher de Adriano.
Extraoficialmente, o MP informou à defesa, em uma reunião no prédio da instituição em maio de 2020, que não tinha interesse no que ela dizia saber sobre o episódio. Julia tinha sido flagrada conversando com uma amiga sobre a situação de Danielle.
"Ela [Danielle] foi nomeada por 11 anos. Onze anos levando dinheiro, R$ 10 mil por mês para o bolso dela. E agora ela não quer que ninguém fale no nome dela? [...} Bateram na casa dela porque a funcionária fantasma era ela, não eu", diz Julia na gravação.
Apesar disso, a promotoria ignorou essa gravação por mais de um ano. "Todo mundo me pergunta coisas que foram elas [a sogra e a ex-mulher de Adriano] que praticaram", defende-se. "Até onde sei, e todo mundo sabe, elas não trabalhavam no gabinete."
O que Julia disse à Justiça
Julia contou em depoimento no TJ que chegou a trabalhar na Alerj entre 2016 e 2017 como assistente na Subsecretaria-Geral de Recursos Humanos e recebia salário de R$ 3.400.
Sua nomeação foi assinada por Jorge Picciani, ex-presidente da Alerj preso na Operação Cadeia Velha, braço da Lava Jato no Rio, em novembro de 2017.
Na sua versão, mesmo como mulher de Adriano, ela trabalhava: fazia questão de ter o próprio dinheiro e não se envolvia com os negócios do companheiro.
Uma das principais acusações que pesam contra Julia é a de que administrava o dinheiro do Adriano enquanto ele estava foragido, o que ela nega.
Julia diz ainda que, depois que deixou o emprego na Alerj em 2017, recebia ajuda de Adriano para as despesas. Ele mandava R$ 5.000 por mês para ela por meio da pizzaria de Raimunda, sua mãe.
Assim como a pizzaria, que não aparece na investigação de lavagem sobre os bens de Adriano, Julia afirma em sua delação que Adriano deixou 70 imóveis para Raimunda. Esses imóveis, curiosamente, também não estão sob alvo da Justiça.
"Ele falou: 'Ó, mãe, se alguma coisa acontecer comigo, os apartamentos aqui, você vai, com o Maurício [miliciano acusado na Operação Intocáveis] e tal'. Quando ele morreu, ela veio com aquele papel que ele deu lá atrás e falou: 'Ele me deu, aquilo lá é meu, é tudo meu e pronto'. Eu falei, tudo bem, porque eu estava no meu limite de sobrevivência, de viver, sabe?", disse Julia, em depoimento ao MP.
O acordo da colaboração de Julia foi negado no MP do Rio depois de muitas idas e vindas e uma crise entre as promotoras Simone Sibilio e Letícia Émile, da força-tarefa que investigava a morte da vereadora Marielle Franco e a cúpula da PGJ do MP. O episódio terminou com a renúncia das promotoras no caso.
Julia aguarda a sentença de seu processo com medo e insiste que não fazia parte dos negócios de Adriano.
Eu tinha um relacionamento com essa pessoa, mas eu não era essa pessoa, não concordava com aquilo. Amava aquela pessoa, [mas] não praticava [os crimes]"
Capitão infértil
O último livro que Julia leu foi "Coragem: Substantivo Feminino", da autora feminista Flávia Campos. Já Adriano gostava de livros sobre atiradores. Nos últimos anos de vida, ficou obcecado por Pablo Escobar —via filmes, séries e tinha uma camiseta com a foto dele estampada.
O ex-PM tinha boa relação com a enteada, mas a menina se recusava a chamá-lo de pai. Julia diz que se incomodava muito com a ausência de Adriano que, com frequência, desaparecia sem dizer para onde ia ou a que horas voltava.
Depois de um tempo, ela passou a achar que a família era algo que o deixava mais tranquilo e caseiro. Assim, o casal decidiu tentar engravidar. Mas, logo no início, Adriano disse que tinha problema de fertilidade, e os dois foram buscar tratamento.
"Ele começou a tomar remédio porque era um problema que ele tinha. Sempre achava que ia dar certo, mas, toda na hora que ia fazer inseminação, vinha: não achamos nenhum espermatozoide com qualidade para fecundar", explica Julia.
O tempo foi passando e as tentativas se seguiam frustradas. Julia deixou o emprego na Alerj porque, segundo ela, o processo era desgastante.
"Eu tomava injeção [de hormônios] e ele mesmo fez uma cirurgia. Tentaram uma punção, não veio, e aí eles abriram o testículo. Ele tomou 20 pontos no saco. Imagina o homem. Ninguém deixa encostar no saco, cara."
Na sequência, veio a Operação Intocáveis. Todo o processo acabou interrompido. Conhecidos dizem que Adriano costumava dizer que onde vivia a morte não podia nascer a vida.
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