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Leonardo Sakamoto

Jesus nasceu em Recife - mas morreu soterrado em um deslizamento

Bebê de 2 meses e criança de 8 anos estão entre os mortos em deslizamento no Recife - Carlos Ezequiel Vannoni/Agência Pixel Press/Estadão Conteúdo
Bebê de 2 meses e criança de 8 anos estão entre os mortos em deslizamento no Recife Imagem: Carlos Ezequiel Vannoni/Agência Pixel Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

24/12/2019 18h32

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Uma barreira de terra deslizou sobre casas em Dois Unidos, Zona Norte de Recife (PE). Ao menos sete pessoas morreram, entre elas um bebê de dois meses. Não chovia no momento e a suspeita é de que o vazamento de um cano teria provocado a tragédia.

Alexandra França, perdeu um filho e um neto. "Na primeira vez, a gente perdeu casa e os móveis. Dessa vez, teve isso tudo", em registro da reportagem do JC Online. O prefeito da capital pernambucana, Geraldo Júlio (PSB), reconheceu a falta de infraestrutura nos morros onde vive parte da população pobre.

Isso ocorreu na madrugada da véspera de Natal. E há um inevitável paralelo entre a morte de um casal e de seu filho recém-nascido e a narrativa cristã do nascimento de Jesus de Nazaré. Ambas famílias estavam onde podiam, por que não havia outro lugar para elas, como lembra o Evangelho de Lucas, capítulo 2, versículo 7.

Se alguma empatia é estendida às vítimas neste momento, por conta do contexto natalino, ela desidrata após as festas. Em alguns casos, chegam a culpá-las por morar em locais que apresentam risco, como se a falta de oportunidade fosse uma escolha.

Parte da sociedade xinga, cospe e blasfema todo aquele que ocupa terrenos improdutivos ou imóveis vazios, reivindicando-os para a moradia, direito previsto na Constituição Federal.

Há um Brasil capaz de pegar em armas para defender seu ex-juiz federal ou ex-deputado e hoje presidente de estimação, que recebiam auxílio-moradia mesmo tendo imóveis próprios. Mas incapaz de entender a dor de outras pessoas e enxergar nelas seus semelhantes, preferindo que permaneçam em áreas de risco do que desapropriar imóveis em nome da função social da propriedade ou requalificar residências.

O Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) estima em 15 milhões de famílias o número de famílias morando em locais precários. Mas o próprio movimento afirma que esse montante está subdimensionado por não considerar os efeitos de toda a crise econômica e do desemprego.

Os moradores das áreas mais ricas das grandes cidades, sejam eles progressistas ou conservadores, revolucionários ou reacionários, de esquerda ou direita, ateus ou cristãos, vivem em relativo conforto e segurança em comparação com quem mora do "lado de fora". Podem se digladiar filosoficamente que, no final dia, voltam para casa sabendo que ela está lá.

Se houve melhora na maneira como as cidades garantem moradia aos mais humildes, isso se deve à mobilização, pressão e luta deles próprios - e não a bondades de supostos iluminados ou da esmola das classes mais abastadas.

Não deixa de ser triste a constatação de que se tivessem interpretado por uma forma mais humana o que significa amar o seu semelhante como a si mesmo, dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, e todo o restante do Novo Testamento, entenderíamos que certos comportamentos não fazem sentido algum. E que esperar um suposto prêmio futuro no céu, enquanto permitimos que milhões vivam num inferno, aqui e agora, é um cuspe nas sagradas escrituras do cristianismo.

A passagem mais legal dos Evangelhos está no mesmo livro de Lucas, capítulo 23, versículo 34: "Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".

Pois sob o olhar indiferente ou conivente de milhões, Jesus nasce e morre. Todos os dias.