Discurso de Bolsonaro mostra que país se acostumou a presidente que mente
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Jair Bolsonaro fez um pronunciamento em rede nacional de TV, nesta véspera de Natal, mostrando que pouco importam os fatos diante das crenças dele. E que a verdade é tudo aquilo que ele diz, a despeito da realidade gritar o contrário.
É comum que presidentes pintem o país de cores mais alegres quando se dirigem à população. Faz parte da liturgia do cargo um certo papel de animador de auditório, principalmente quando o objetivo é incentivar a economia.
O que ele fez, contudo, é diferente. Era como se falasse de um outro lugar. Vejam alguns trechos do discurso:
"Estamos terminando 2019 sem qualquer denúncia de corrupção."
O ano foi marcado por denúncias de que o PSL, partido pelo qual se elegeu, administrou um vasto laranjal eleitoral. Seu ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, foi indiciado pela Polícia Federal e denunciado pelo Ministério Público. O suco da laranja teria bancado até material de campanha do próprio Bolsonaro. Isso sem contar as investigações que apontam que não apenas seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, mas o clã como um todo pode estar envolvido em desvios de recursos públicos gerenciados por seu homem de confiança, Fabrício Queiroz.
"O mundo voltou a confiar no Brasil."
O país, sob sua gestão, despencou da posição de referência global na luta contra as mudanças climáticas para se tornar um pária ambiental. O presidente fomentou, com seus discursos e através do desmonte da fiscalização, o desmatamento e as queimadas na Amazônia. Fundos de investimentos começaram a se desfazer de posições no Brasil diante da incapacidade do país em provar que seus empreendimentos operam de forma de sustentável.
"O viés ideológico deixou de existir em nossas relações comerciais."
O governo proporcionou uma guinada na política externa, abandonando a histórica independência. Adotou um comportamento de vassalagem com os Estados Unidos, mas viu Donald Trump ser pragmático, mantendo a Argentina como preferência na indicação à OCDE, o clubão dos países ricos. Colocou a ideologia à frente de exportações, e por conta de uma embaixada em Jerusalém e do desmatamento, criou desavenças desnecessárias com países islâmicos e europeus.
"Tive a possibilidade ímpar de escolher 22 ministros, pelo critério técnico, e compromissados com o futuro do Brasil."
O rosário de bobagens cometidas por Ricardo Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub, por exemplo, mostram que Bolsonaro não seguiu critérios técnicos, mas meramente ideológicos na escolha do ministro da Educação - a área mais importante para a construção do futuro. Um cone, uma vassoura ou um espanador ocupando aquela cadeira teriam sido menos danosos ao país do que ambos. O ministério se tornou ponta de lança para a guerra cultural, enquanto faltou até papel higiênico em universidades.
"Hoje temos um presidente que acredita em Deus."
Praticamente todos os presidentes da República acreditavam em Deus. Há exceções, como Getúlio Vargas - um agnóstico que instituiu ensino religioso nas escolas públicas, em 1931, em nome da governabilidade. Ou Fernando Henrique, que se comportou como um agnóstico não-praticante, ajoelhando e dizendo amém à igreja. O que importa é que um presidente defenda o direito de todos terem suas crenças sem privilegiar uma. Bolsonaro, contudo, está longe disso. Prova foi sua esposa vestida como uma camiseta estampada "Jesus" em uma transmissão oficial de Estado.
O discurso foi ao ar no mesmo dia em que a sede da produtora do Porta dos Fundos foi alvo de um ataque com dois coquetéis-molotov, no Rio de Janeiro. O caso ocorre após ameaças por conta de seu especial de Natal - um programa de humor sobre o aniversário de Jesus. Investigações precisam apontar os responsáveis, porque tudo indica um caso de terrorismo cometido por fundamentalistas cristãos. Grupo que se sente bem à vontade com o apoio de Bolsonaro.
Um país mais intolerante
É esse Brasil que ele está entregando ao final de seu primeiro ano de governo - um local em que o ódio sente-se livre para se manifestar publicamente; em que as milícias estão próximas do coração do poder; no qual policiais matam (mais) negros pobres com a certeza de impunidade; em que pobres são cortados do Bolsa Família sem saber o porquê e desempregados glorificados como empreendedores ao vender bolo na rua para não morrerem de fome. Um lugar em que reputações são destruídas por hordas de seguidores e robôs.
Não é à toa que, entre os vetos do presidente ao projeto anticrime aprovado pelo Congresso Nacional, esteja a possibilidade de triplicar a pena em casos de crimes contra a honra propagados em redes sociais. Não que a medida fosse boa, mas a justificativa para o veto foi a autopreservação. Como provou ao longo de 2019, ele governa em nome de si, de sua família e de suas milícias.
De acordo com o Datafolha, 43% dos entrevistados disseram que nunca confiam em afirmações do presidente, e 37% declararam confiar às vezes. O Brasil termina o ano acostumando-se a um presidente que não fala a verdade.
Bolsonaro sabe disso e fez um pronunciamento para aqueles que nele ainda acreditam, a fim de que continuem defendendo-o a todo o custo, visando a 2022.
A pergunta é: quem defenderá o restante da população?