Ao querer importar terrorismo para o Brasil, governo mira seu próprio povo
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No Brasil, com exceções pontuais (como ataques a produtoras que fazem programas de humor perpetrados por pessoas alinhadas ideologicamente ao governo), ações que adotam certos métodos terroristas são cometidas por atores estatais, como policiais e militares, paraestatais, como milicianos, e organizações criminosas, nos campos e periferias, a fim de incutir o medo na população visando a seu controle.
A América do Sul sofreu com o terrorismo nas últimas décadas - como no bombardeio à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em julho de 1994, ou nas ações militares, insurgentes e paramilitares na Colômbia durante a guerra. Não chega a ser um problema regional como a fome, a falta de serviços básicos de educação, saúde e transporte, o déficit de moradias, a poluição e o desmatamento, a violência urbana e rural, o desemprego e, é claro, a corrupção.
Não chega a ser, portanto, uma ameaça ao Brasil. Nem o grupo libanês Hezbollah, aliado do Irã e inimigo de Israel, mistura de partido, organização social e milícia, que Bolsonaro tenta classificar como terrorista - apesar da avaliação não ser endossada pelas Nações Unidas.
A questão, portanto, é quem são os "terroristas" que ele deseja poder combater?
O chanceler Ernesto Araújo divulgou uma nota, nesta sexta (3), a respeito do ataque norte-americano que matou o comandante da Guarda Revolucionária iraniana. Nela, ele diz: "O terrorismo não pode ser considerado um problema restrito ao Oriente Médio e aos países desenvolvidos, e o Brasil não pode permanecer indiferente a essa ameaça, que afeta inclusive a América do Sul".
Bolsonaro tem chamado as manifestações populares contra governos de direita de terroristas. "O problema do Chile foi gravíssimo. Aquilo não é manifestação nem reivindicação. São atos terroristas", disse em outubro do ano passado.
Ele repetiu a mesma ideia, em novembro, e completou: "Nós temos que nos preparar sempre para não sermos surpreendidos pelos fatos. Até o momento não tem motivo nenhum, nós entendemos dessa forma, daquele movimento vir para cá".
Para deixar bem claro ao que o presidente se refere, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, seu filho, afirmou, no dia 31 de outubro, em uma entrevista à jornalista Leda Nagle, que "se a esquerda radicalizar" em protestos de rua no Brasil, o governo terá que dar "uma resposta que pode ser via um novo AI-5". O ato institucional, de 1968, deu poderes ao Poder Executivo para fechar o Congresso, cassar direitos e censurar e adotar violência contra opositores.
Ideia semelhante foi repetida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Até 2019, os arroubos ideológicos nas relações exteriores foram limitados por freios e contrapesos. Os militares, por exemplo, foram fundamentais para impedir um desvario na fronteira entre o Brasil e a Venezuela.
Politicamente, os países mais poderosos já veem o Brasil como uma subpotência degradada e rebaixada. Mas a frase também tenta justificar o alinhamento às recentes ações norte-americanas, o que pode ter um custo alto.
Mas a questão não é apenas a imagem externa, mas o que o governo quer internamente com isso. A impressão é de que ele avisa que pode entrar em guerra com parte do seu próprio povo. Coincidentemente, aquela parte que não concorda com ele.
Em tempo: A nota do Itamaraty é mal redigida ou esconde um desejo do governo de se rebelar contra a vassalem ao Grande Irmão do Norte. Já no seu primeiro paragrafo diz: "Ao tomar conhecimento das ações conduzidas pelos EUA nos últimos dias no Iraque, o Governo brasileiro manifesta seu apoio à luta contra o flagelo do terrorismo e reitera que essa luta requer a cooperação de toda a comunidade internacional sem que se busque qualquer justificativa ou relativização para o terrorismo". Uma leitura inocente poderia concluir que a nota está, com razão, condenando o terrorismo internacional praticado pelo Tio Sam com drones e execuções.