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Leonardo Sakamoto

Mesmo após mudança, PL das fake news mantém risco à liberdade e privacidade

fake news - pixabay
fake news Imagem: pixabay

Colunista do UOL

24/06/2020 20h15

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Por Jonas Valente*, especial para a coluna

A desinformação e as chamadas "fake news" são um problema grave que deve ser combatido, certo?

Essa é uma afirmação com grandes chances de unanimidade. Mas como? Aí é que mora o problema - e um grande problema. Sob o argumento de combater esta prática, o Senado Federal votará nesta quinta (25) o Projeto de Lei 2.630/2020, cujo relatório - do senador Angelo Coronel - acaba de ser protocolado.

Tornado público menos de 24 horas antes da votação (o que, em si, é um escândalo), o texto segue colocando em risco a privacidade dos usuários de internet e, consequentemente, a liberdade de expressão. Isso porque transforma todos em criminosos em potencial ao determinar que, para usar uma rede social ou aplicativo de mensagens, será obrigatório ter um celular e apresentar documento de identificação válido.

Esta exigência traz primeiro um caráter excludente, uma vez que milhões de brasileiros não possuem nem documento de identidade, nem celular. Em que pese os números anunciados de "mais de um chip por pessoa no Brasil", isso se deve à posse de mais de um acesso por usuários com maior renda. Ainda há muita gente no Brasil fora do circuito e que, portanto, seria impedido de usar uma rede social em um computador.

Mas a obrigação tem um potencial mais preocupante. Ela amplia em muito a vigilância sobre os dados das pessoas. Isso dificulta a atuação de quem se protege legitimamente de ofensivas autoritárias.

O texto do senador Coronel impõe ainda que aplicativos de mensagem, como o Whatsapp, guardem as interações entre as pessoas de mensagens com "encaminhamentos em massa". Ou seja, se você passou uma mensagem ou se participar de algum grupo e alguém, lá na frente, decidir questioná-la na Justiça, você poderá ser punido a posteriori. Esse cenário será trágico para o ativismo social ou até para os próprios políticos.

Os dispositivos incluídos no texto atacam em cheio uma série de direitos já previstos na legislação. Pois a Constituição Federal consagrou o princípio da presunção de inocência, e não da presunção de culpa, como coloca o texto. A Carta Magna também elenca o respeito à privacidade, cuja interpretação do Supremo Tribunal Federal em julgamento, neste ano, expandiu para reconhecer a proteção de dados pessoais como um direito autônomo.

E em que consiste este direito? A Lei Geral de Proteção de Dados disciplina por meio de princípios e diretrizes, entre os quais o da "necessidade", segundo o qual a coleta de dados deve ser o estrito necessário para uma determinada finalidade. Tal princípio não é uma invenção brasileira, mas uma diretriz largamente utilizada por legislações de proteção de dados em democracias de todo o mundo.

Sob a promessa de "combater as fake news", o texto piora o problema ao dar mais informações às plataformas - informações que serão utilizadas em seus sistemas de personalização de anúncios e filtragem de mensagens juntamente com os "likes", "reações", "fotos" e "posts" produzidos diariamente por nós em rastros digitais. São esses recursos os utilizados pelas fábricas de desinformação e gabinetes do ódio contra quem questiona poderosos na rede. Desta maneira, o remédio deverá ter efeito contrário e abastecer a lógica do sistema que atualmente tem na desinformação não somente uma prática comum como um negócio lucrativo.

Mais grave: ao criar as condições para que as plataformas tenham mais dados sobre os cidadãos, o relatório aumenta o poder dessas empresas sobre nossas vidas. Se elas já buscam cruzar nossas preferências e atitudes para não somente prever nossos comportamentos como também direcioná-los, ao ter acesso ao documento de identificação e ao número de celular as empresas poderão identificar de forma inequívoca as pessoas.

Em um momento em que todo o mundo questiona o poder das plataformas digitais sobre os indivíduos e busca diminui-lo, o Brasil dará um passo central no caminho inverso.

O relator alega que, sem isso, seria impossível fazer investigações para punir responsáveis pela difusão de desinformação na internet. Não é verdade. A legislação já dispõe de tipos penais que podem ser utilizados para judicializar ataques, como calúnia, injúria e difamação. E a legislação eleitoral já tipifica as chamadas notícias falsas duas vezes, permitindo que candidatos se defendam de alegações falsas.

Do lado da investigação, há diversos instrumentos para obter dados sobre os responsáveis pela prática de desinformação. Com boa vontade e um maior aparelhamento, polícias e Ministério Público poderiam chegar não aos usuários individuais (em um esforço "no varejo"), mas mirar "no atacado" e identificar as fábricas de desinformação e quem as financia. O inquérito das "fake news" no STF é apenas um exemplo.

Em todo o mundo, a dificuldade de combater a desinformação está no fato de que o problema é complexo e sem soluções fáceis. Senadores veem uma "janela de oportunidade" para aprovar "alguma lei" antes das eleições. Essa demanda criou uma urgência que justifica a ausência de debate e pode ter consequências graves não somente para eles como para o conjunto dos usuários de internet no país.

A última versão do relatório, após fortes pressões dentro e fora do Brasil, que incluíram inclusive manifestações dos relatores para a liberdade de expressão das Nações Unidas e da Organização os Estados Americanos (OEA), foi por um caminho alternativo ao anterior, excluindo toda parte de criminalização de usuários ventilada anteriormente.

Mas o problema da identificação e rastreabilidade em massa dos usuários da Internet permanece e, se o Senado votar sem alterações essa versão do relatório, não será apenas a privacidade e os dados pessoais de milhões de brasileiros que estarão em risco, mas também sua liberdade de expressão.

(*) Jonas Valente, jornalista e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, integra o Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB e a Coalizão Direitos na Rede.