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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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Deputado chama de praga fiscalização no café, campeão de escravidão em 2021

Trabalhadores são resgatados de fazenda de café, em Campo Alto (MG) - Auditoria Fiscal do Trabalho
Trabalhadores são resgatados de fazenda de café, em Campo Alto (MG) Imagem: Auditoria Fiscal do Trabalho

Colunista do UOL

21/05/2022 20h24

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A fiscalização das condições de trabalho em lavouras de café foi chamada de "praga" pelo vice-líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara na Comissão de Agricultura e Pecuária. O deputado Evair de Melo (PP-ES) defendeu rever o poder dos "maus fiscais" que, segundo ele, estão "infernizando" a vida de produtores e trabalhadores. Importante empregadora, a produção de café foi a atividade econômica com o maior número de resgatados de condições análogas às de escravo no Brasil em 2021.

Dos 1.959 resgatados no ano passado, 310 estavam no cultivo do grão, 215 no de alho, 173 na produção de carvão vegetal, 151 na preparação de terreno, 142 na cana-de-açúcar e 106 na criação de bovinos para corte, de acordo com dados do Ministério do Trabalho e Previdência.

"Hoje, temos uma praga que são esses maus fiscais do Ministério do Trabalho que estão incentivando o desemprego e o homem largar a agricultura", afirmou o parlamentar no último dia 18. "São poucos, mas existem, os maus fiscais. Estão a serviço do desemprego, defendem o caos. Tratam os produtores e trabalhadores como bandidos. Isso está afastando as pessoas da área rural."

De acordo com ele, os trabalhadores tiram de R$ 4 mil a R$ 8 mil por mês na colheita do café no seu estado vindos de Pernambuco, Maranhão, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minais Gerais. "Está insuportável a presença desses poucos fiscais na colheita do café no Espírito Santo e em outras regiões do Brasil."

Auditores fiscais com os quais a coluna conversou afirmam, contudo, que hoje a quantidade de fiscalizações trabalhistas anuais (somando todo tipo de inspeção) chega a ser de 10% do que era há na primeira década do século. As razões vão da adequação dos produtores rurais às normas e também pela redução no número de auditores fiscais do trabalho, com a não reposição dos aposentados.

Melo defendeu "rever o poder desses tais fiscais que todo o dia inventam uma norma nova". Disse há uma "indústria da multa", em consonância com as críticas que vêm sendo feitas pelo presidente da República, de quem é próximo.

Essa não é a visão do Ministério Público do Trabalho. A procuradora Lys Sobral, que está à frente da coordenadoria da instituição voltada ao combate às formas contemporâneas de escravidão, afirmou à coluna que ainda estamos distantes de uma situação de conformidade de todos os produtores com a lei.

"Mesmo com todo o rigor da fiscalização, ainda assim encontramos situações muito precárias, inclusive casos de trabalho escravo, em que a realidade é a superexploração. Por isso, a ação da Inspeção do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho na produção do café são imprescindíveis", afirma.

Fiscalização no café no ES resgatou 65 trabalhadores com covid

Empresas, organizações e cooperativas têm investido em treinamento e certificações com o objetivo de entregar um café com qualidade social e trabalhista. E sindicatos de trabalhadores rurais, como os de Minas Gerais, têm acompanhado de perto, tentando balizando processos. Ouvidos pela coluna afirmam que apesar disso, há ainda muitos produtores que operam fora das regras. E, em alguns casos, de forma criminosa.

Dos 71 resgatados da em uma fazenda de café, em Vila Valério, no Espírito Santo, em maio de 2021, 65 estavam trabalhando com covid-19 quando foram encontrados pelos auditores fiscais do trabalho e por policiais federais. E, mesmo com os sintomas, continuavam no serviço, sem que fossem isolados ou recebessem assistência por parte do empregador.

Do total de vítimas em 2021, 31 tinham menos de 16 anos e 33 entre 16 e 18. De acordo com o ministério, a atividade com maior número de crianças e adolescentes resgatados foi a produção de café

Apesar de grave, por violar a dignidade humana, o trabalho escravo perfaz a minoria dos problemas trabalhistas na produção de café.

Falta de carteira assinada (estimativas existentes apontam formalização de apenas 40% no setor), pagamento abaixo do valor acordado, oferecimento de refeições com baixo padrão, falta de equipamentos de proteção individuais, falta de banheiro, descontos ilegais nos salários, desrespeito a normais de saúde e segurança são algumas das infrações identificadas.

O nosso país é o maior produtor e exportador mundial de café, de acordo com dados do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé). De cada cinco cafés consumidos no mundo, três têm origem em fazendas brasileiras. Em 2019, o país foi responsável por 34,7% da produção mundial do grão. Nesse ano, foram produzidas 3 milhões de toneladas de café por aqui.

A produção ocorreu em 1,8 milhões de hectares - 990,8 mil em Minas Gerais, seguido pelo Espírito Santo, com 379,1 mil de hectares. Os dois estados são os maiores produtores nacionais do grão. Do total produzido em 2019, 49,7% foi colhido em Minas Gerais e 26,2% no Espírito Santo.

Trabalho escravo no Brasil hoje

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

O grupo especial móvel de fiscalização, que completa 27 anos neste mês de maio e é a base no combate a esse crime no país, conta com a participação da Inspeção do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União.

Os 58 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.