Ao insultar vacina obrigatória, Nunes consuma o casamento com Bolsonaro
Ricardo Nunes (MDB) deu uma cadeirada discursiva no Zé Gotinha e abraçou o pior do bolsonarismo-raiz ao afirmar que é contra a obrigatoriedade da vacina. Entende-se que, em nome do voto, candidatos comam salgado em boteco duvidoso, beijem filhote de cachorro de rua e deem bom dia para cavalo, mas abraçar uma posição que coloca crianças em risco é abrir o alçapão no fundo do poço.
"Tenho muita tranquilidade, depois de toda experiência, e tenho humildade para te falar que hoje sou contra a questão da obrigatoriedade", disse o prefeito ao podcast do bolsonarista Paulo Figueiredo, sobre a pandemia de covid-19. Depois, em outra entrevista, afirmou que, hoje, não teria feito o passaporte da vacina.
Por "hoje", leia-se, em uma campanha eleitoral em que ele precisa tirar votos bolsonaristas que estão com Pablo Marçal (PRTB). O prefeito tem 40% desse grupo, o influenciador conta com 41%, segundo o Datafolha.
Questionado por Guilherme Boulos (PSOL) sobre essas declarações no debate do SBT, nesta sexta (20), Nunes reclamou que o deputado federal estava levando a discussão para a "baixaria", tratou apenas do passaporte vacinal sem falar do arrependimento sobre a obrigatoriedade e ainda disse que ele tornou São Paulo a capital mundial da vacina. O que é irônico, pois a Forbes só se referiu à cidade dessa forma na pandemia devido ao sucesso de ações como a obrigatoriedade e o passaporte.
Para se vender como bolsonarista desde pequeno, Nunes vem batendo em Marçal, mais identificado com esse campo. Travou um bate-boca com o ex-coach no debate da RedeTV/UOL e vem mirando ele em suas inserções de TV. Lembra à população que o partido de Marçal é comandando por pessoas com ligação ao PCC e que ele foi preso e condenado por furto qualificado ao participar de uma quadrilha de roubo de senhas de banco.
E após ter participado de um ato que pedia o impeachment de Alexandre de Moraes e a anistia aos golpistas de 8 de janeiro de 2023, Nunes fez críticas ao ministro do Supremo Tribunal Federal em entrevista. Também disse que está agindo para "extirpar a extrema esquerda" de São Paulo e que não tem nada contra o voto impresso. Defendeu o "escola sem partido" e o ensino religioso em unidades públicas.
O Brasil já foi um caso exemplar de vacinação para o mundo, mas vem apresentando queda na taxa de imunização, o que disparou o alerta no Sistema Único de Saúde. Muito por conta da viralização do discurso negacionista, que é alimentado por declarações como essas de Nunes. O prefeito não nega a importância das vacinas, mas é contra a sua obrigatoriedade, o que dá quase no mesmo. Por trás do discurso de "liberdade absoluta" que excita o bolsonarismo, está o risco à vida.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que "é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias". Ao mesmo tempo, a Constituição Federal trata expressamente como dever do Estado manter a criança a salvo de qualquer forma de negligência e, ao mesmo tempo, garantir seu direito à vida, à saúde e às convivências comunitária e familiar.
Durante a pandemia, o STF acordou que a obrigatoriedade da imunização não caracteriza violação à liberdade de consciência e que o poder público pode impor aos cidadãos que recusem vacinação medidas restritivas previstas em lei em julgamento realizado em 17 de dezembro de 2020. O próprio ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, considerou no julgamento que a liberdade de crença filosófica e religiosa dos pais não pode ser imposta às crianças uma vez que o poder da família não existe como direito ilimitado para dirigir o direito dos filhos, mas para proteger as crianças contra riscos decorrentes da vulnerabilidade.
E, acompanhando sua decisão anterior, o Supremo reafirmou que a questão da proteção à saúde não é monopólio da União. Considerando que a vacinação é obrigatória, se o governo federal não quiser implementar medidas restritivas de direitos aos não-vacinados, estados e municípios podem criar. Na avaliação da constitucionalista Eloísa Machado, professora da FGV Direito SP, "pais que não vacinarem seus filhos poderão ser responsabilizados."
Isso não significa que pessoas serão arrastadas na base da força bruta a se vacinar, como na Revolta da Vacina, no início do século 20. Mas a Suprema Corte afirmou que medidas indiretas podem ser tomadas, proibindo o acesso a lugares de quem nega a imunização, como locais de trabalho, à matrícula escolar ou a benefícios sociais.
Uma pessoa que acredita, por exemplo, que uma vacina desenvolvida na China carrega chips 5G por conta de uma conspiração envolvendo cavaleiros templários, intelectuais illuminati e bilionários comunistas, ou crê em mentiras como o imunizante da Pfizer ser capaz de transformar pessoas em jacarés, fazer crescer barba em mulheres, matar adolescentes e provocar Aids, é porque foi vítima de um intenso processo de desinformação e manipulação. Isso é o que vimos no seio da narrativa bolsonarista, que agora é abraçada pelo prefeito. Que, vale frisar, não é de extrema direita.
Abandonar os filhos dos negacionistas à própria sorte seria refutar valores que nos tornam humanos e abraçar a icônica frase de Bolsonaro na pandemia: "Eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo". Mas também criar riscos para todos. Porque, para que uma vacina funcione, não basta apenas o indivíduo tomar uma dose, mas toda a coletividade, a fim de gerar uma imunização coletiva. Quando pessoas começam a achar que a questão é sua liberdade individual, permitem brechas nessa imunidade coletiva, criando problema para a saúde de todos.
Pôr em risco a vida dos paulistanos vale uma eleição?