Torcida pela morte do papa Francisco nas redes mostra escalada do ódio
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Desde que o papa Francisco passou a lutar pela vida no hospital Gemelli, em Roma, devido a um grave quadro respiratório, há um rosário de autointitulados cristãos torcendo por sua morte (incluindo requintes de crueldade) nas redes sociais. Provando que a ultrapolarização derreteu os miolos de muita gente, acusam Francisco de ser "comunista" e pedem para que sua vida seja ceifada.
Não irei citar o nome dos santos, apenas trazer trechos dos seus milagres, para não acender vela para quem não merece: "Vou festejar muito o dia em que esse papa for para o inferno", "papa comunista tem que morrer", "todo sofrimento do mundo é pouco para essa desgraça", "espero que morra agonizando", "nunca foi papa, foi um vagabundo comunista que adora terrorista", "logo este papa comunista vagabundo sem vergonha que cagou no trono de Pedro vai comer capim pela raiz", "vou rezar para que ele morra logo".
O comportamento desse naco violento conseguiu juntar políticos e influenciadores da esquerda à extrema direita, que alertam que, independentemente de se concordar ou não com as posições de Francisco, não é admissível alguém que se intitula cristão e, especificamente, católico, torça pela morte de alguém, ainda mais um líder religioso conhecido por pregar a solidariedade.
A acusação de "comunista" não é novidade. Ele mesmo tratou do assunto em uma entrevista ao canal C5N, da TV argentina, em 2023: "Padre, você é comunista? Minha carta de identidade é Mateus 25. Leia Mateus 25 e veja se quem escreveu não era comunista. Tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, estive nu e me vestiste. Essa é a regra de conduta".
Isso me lembra de uma citação atribuída ao já falecido Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: "Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista".
Quando Jorge Mario Bergoglio afirmou, em uma entrevista, que Lula havia sido preso de forma injusta, também foi alvo da extrema direita brasileira, que o chamou de comunista. Mas como o mesmo grupo também considera o Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal comunistas, não tem o mérito da exclusividade.
Mas uma coisa é tachar o papa de comunista. O indivíduo pode ser de uma corrente ultraconservadora católica ou cristã que bate de frente com a de Francisco em uma série de temas, principalmente no acolhimento aos mais necessitados. Vale lembrar, contudo, que o papa "comunista" defende dogmas da igreja, como a questão do direito ao aborto, que ele considera um homicídio e uma violação da dignidade humana.
Outra é desejar e defender a sua morte, o que reforça a escalada do ódio, a banalização da violência e a eliminação do outro como instrumento de debate social.
Falta amor no mundo, mas também interpretação de texto
Como já disse aqui, não sou um homem de fé, apesar de ter crescido em um lar católico, feito comunhão e crisma, e, ao mesmo tempo, ter estudado em escola adventista e lido a Bíblia integralmente. Por isso, sempre penso que seria tão bom se as pessoas entendessem o que está escrito no Evangelho de Mateus, capítulo 25, citado por Francisco, especificamente do versículo 35 a 40:
"Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me. Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes me ver. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? Ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? Ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes."
Se interpretássemos por uma forma mais humana o que significa amar o seu semelhante como a si mesmo e todo o restante, entenderíamos que o ódio ao outro por sua natureza não faz sentido algum. Para muita gente contudo, Jesus é só um pingente de ouro ou um bom negócio.
Se Jesus voltasse defendendo a mesma ideia central presente nas escrituras sagradas do cristianismo (e que, por ser tão simples, não é seguida como deveria) e andando ao lado dos mesmos párias com os quais andou, seria humilhado, xingado, surrado, alfinetado e explodido. Ele seria chamado de mendigo e de sem-teto vagabundo, olhado como operário subversivo, alcunhado como agressor da família e dos bons costumes, violentado e estuprado, rechaçado na propaganda eleitoral obrigatória em rádio e TV, difamado nas redes sociais, censurado pela Justiça. Teria seu barraco queimado e toda sua vida transformada em cinzas em uma reintegração de posse ao som das palmas dos ricos. Seria linchado num poste pela população em nome da fé e das tradições, escravizado em uma fazenda, jogado da ponte por policiais. Receberia socos e pontapés dos hoje autointitulados sacerdotes do Templo, supostos representantes dos interesses de Deus na Terra que afirmam lutar pelo direito de expressarem suas crenças, quando querem anular tudo o que pode ameaçar seu controle sobre o povo. E, ao final, alguém ainda tiraria uma selfie ao lado de seu corpo morto para postar no Instagram. Ou faria uma dancinha sobre o cadáver para o TikTok, chamando-o de comunista.
Muitos que gritam "comunismo!" têm nojo do dicionário
Por fim, a palavra "comunismo" retirada de seu sentido original, de propriedade comum dos meios de produção e da ideologia por ela sustentada, se tornou no Brasil um simples comando para o linchamento digital, independentemente de quem esteja do outro lado. O objetivo é tirar a credibilidade e destruir, muitas vezes para servir de exemplo. E, consequentemente, esse processo tornou a palavra depositária do "mal". E um grande mal é sempre temido e vira uma ameaça.
Muitos que "xingam" pessoas ou instituições de comunistas não compreendem o que, de fato, a palavra significa. Caso as pessoas soubessem História e estivessem atentas ao que se passa à sua volta, buscando saber as manifestações do comunismo no Brasil e no redor do mundo, perceberiam que deveríamos, neste momento, temer a ascensão de versões atualizadas do fascismo e do nazismo.
Muitos ouviram de seus "mentores" que comunismo é um tipo de "governo", formado por "vagabundos que não gostavam de trabalhar", que ajuda a "perverter sexualmente" as "pessoas de bem" e a "destruir as famílias", controlado por "bilionários pedófilos" e "atores de Hollywood" que tentam "vacinar os cidadãos com chips 5G" a fim de controlar seus pensamentos. O excesso de aspas não é proposital, apenas triste.
Graças à sabedoria que circula nas redes sociais, descobrimos, que a cantora Madonna, a revista Economist, as Nações Unidas, o jornal New York Times, a Rede Globo, o Facebook (antes de Trump, claro), o cantor Roger Waters, o filósofo e economista conservador Francis Fukuyama, a deputada de extrema direita Marine Le Pen, banqueiros multibilionários e a multinacional Pfizer são comunistas. Além de Leonardo DiCaprio e do papa, claro.
Despido de seu significado, o termo também se tornou um elemento de identificação de grupo. Ou seja, uma postagem chamando o papa de comunista imediatamente passa uma mensagem compreendida pelos demais membros do grupo, gerando conexão. De que aquilo é ruim, de que não deve ser consumido, de que deve ser combatido. E, se possível, morto.
Como já disse aqui, hoje a palavra é "comunismo". Amanhã, quem sabe, será "democracia".