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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Aumento do Judiciário é balde de água fria em ato pela democracia

Colunista do UOL

11/08/2022 10h10

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Tentei pensar num timing pior para o Poder Judiciário, a casta mais privilegiada do funcionalismo público brasileiro, conceder a si próprio um aumento de 18%, como foi feito ontem pelo STF. Seria cômico se não fosse trágico.

É uma decisão marcada pela mais completa falta de sentimento nacional. Politicamente, dá a Jair Bolsonaro o argumento que ele não tinha para criticar o ato pela democracia.

O presidente da República desde sempre abriu uma guerra narrativa contra o Poder Judiciário, principalmente o Supremo Tribunal Federal. No lançamento de sua candidatura, disse claramente que Executivo e Legislativo são "poderes irmãos" contra o outro.

Esta semana está sendo pago um auxílio de R$ 600 para famílias brasileiras que passam fome. Em mais de metade dos municípios tem mais gente vivendo de auxílio do governo do que de emprego. As pessoas estão passando fome e vivemos uma crise econômica.

Acabamos de passar um período dificílimo de pandemia, tornado ainda pior pelo caos que o presidente precisa causar diariamente porque é sua forma de fazer política.

Jair Bolsonaro dobrou a aposta na narrativa golpista chamando embaixadores estrangeiros para lançar dúvidas sobre o processo eleitoral. Está em guerra aberta com a Justiça Eleitoral instrumentalizando as Forças Armadas.

É neste contexto que surge no meio jurídico a Carta pela Democracia, à semelhança de outra do passado feita pelos intelectuais da mesma faculdade de Direito do Largo São Francisco. Entre as primeiras assinaturas estão ministros aposentados do STF.

Houve ampla adesão de outros setores da sociedade. O movimento se propõe a unir pessoas de diferentes ideologias e com o ideal comum de defesa do Estado Democrático de Direito.

Obviamente, nos tempos autoritários que vivemos, jogariam água neste chopp. Há semanas tem gênios cobrando assinatura como se fosse uma passeata obrigatória de Fidel Castro.

Quem não assina é fascista, dizia um tweet de famoso que me enviaram semanas atrás. Então temos um país de 214 milhões de fascistas. Não tem como defender democracia na base de autoritarismo.

Nesse caldo divisionista, surge um outro abaixo-assinado pela democracia, feito pelo Movimento Advogados de Direita Brasil. Tem o mesmo tamanho mas não tem o mesmo status e simbologia do original.

Cabe perguntar o que é a democracia a ser defendida. O mais básico é o prosseguimento pacífico do processo eleitoral. Ocorre que ele, sozinho, não faz uma democracia. Rússia, Venezuela, Turquia e Angola, por exemplo, são ditaduras eleitorais.

Podemos expandir o conceito para a existência de Três Poderes com um sistema de freios e contrapesos para que um não se sobreponha ao outro. Todos os cidadãos têm direitos políticos e garantias de suas liberdades. É democrático, mas ainda não uma democracia plena.

Todos esses elementos estão atrelados a uma forma específica de administração do Estado, que pode ser transitória. Democracia é de baixo para cima, não o oposto. Ela é plena quando a liberdade e a dignidade de todos os cidadãos e de cada um estão no centro de decisões coletivas em todos os níveis da sociedade.

Sob este prisma, o aumento de R$ 39 mil para R$ 46 mil do teto do Judiciário no dia anterior da leitura da carta da Democracia é um deboche. A atitude deixa claro que está internalizada a ideia de diferentes classes de cidadãos, o que é incompatível com o ambiente democrático.

Eu já trabalhei no Judiciário e ouvi de ex-colegas todas as explicações técnicas sobre a legitimidade do aumento. Estão sem reajuste desde 2017 alguns e desde 2019 outros, há previsibilidade e orçamento.

Muitos deles assinaram a carta pela Democracia. Eu também. Não estamos, no entanto, defendendo a mesma ideia. A minha é de um só país, em que servidores públicos têm a obrigação do sentimento nacional.

O Estado Democrático de Direito de Aumento do Judiciário é aquele em que uns são mais iguais que os outros. Pode piorar. Vai que surgem os que vão propor calar esse tipo de crítica para preservar a "democracia".

Vida longa e paciência infinita aos democratas que levam a coisa a sério.