Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Que tipo de ficção será capaz de competir com a nossa realidade?
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Imagine que alguém resolvesse fazer uma versão tupiniquim de The Crown retratando a família real bolsonarista.
Antes que me julguem por querer comparar nossa democrática dinastia Bolsonaro com a impositiva realeza britânica, informo que não fui eu quem abri o precedente. Essa história de ungido por Deus, coisa que só os reis alegam, jamais saiu nem sairá da minha boca.
Mas voltemos à série. De repente, num capítulo qualquer, resolvem mostrar o clã no funeral da Rainha Elizabeth. E a obra de ficção mostra que Jair Bolsonaro leva como convidado oficial Silas Malafaia.
A primeira-dama leva o próprio maquiador a tiracolo, ele informa que está pagando do bolso. Os dois postam fotos de blogueirinha nas redes sociais, para delírio das paquitas de um político e escracho das paquitas do adversário.
O nome de Michelle Bolsonaro vira um dos termos mais buscados na internet. Há demanda para saber tudo sobre os dois vestidos, o colar de pérolas, a icônica casquete com voilette preto. Há quem compare com Jackie Kennedy.
Grã-finas feministes progressistes dizem, de forma maldosa, que Michelle Bolsonaro mirou em Diana e acertou em Perpétua, a personagem de Tieta do Agreste eternizada na televisão por Joana Fomm.
Por que feministes tratam mulher da mesma forma que faz a tropa de choque bolsonarista? Porque são pessoas virtuosas e superiores, então podem agir exatamente igual a um machista hidrofóbico.
Um youtuber bolsonarista está em Londres e resolve causar naquele estilo que faz sucesso. Avista uma jornalista mulher, chega filmando e xingando coisas sem sentido, como se fosse um bêbado expulso de bordel de beira de estrada.
No caso, ele diz que a jornalista da BBC, emissora estatal britânica, não é bem vinda no país. Ele é brasileiro.
O próprio presidente resolve bancar o blogueirinho chiliquento e reclamar dos preços nos postos de gasolina em Londres. E, repare, o pessoal esqueceu completamente a Rainha Elizabeth.
Sinceramente, ninguém colocaria nada tão rocambolesco numa peça de ficção. Se colocasse, todas as paquitas de Jair Bolsonaro reagiriam com fúria e com razão.
É esculhambação e chinelagem demais. Só poderia ser perseguição um retrato tão patético das nossas autoridades e das nossas paquitas de político. Confesso que até eu concordaria. Francamente, nem para ficção o enredo serve.
Enquanto isso, a candidatura presidencial empaca. Seu principal adversário avança com sucesso na campanha pelo "voto útil". É uma tese que equipara a eleição a uma corrida no Jockey Clube, coisa chique. Você aposta no cavalo que ganha, simples assim.
Existe apenas um candidato que seria capaz de derrotar o atual presidente. Isso basta, é preciso que ele saia do poder a qualquer custo. Depois, vai dar tudo certo. E tome toneladas de pânico moral.
Medalhões da política nacional se unem em torno da ideia. Agora vai. Anos atrás, algumas das mesmas raposas políticas pregavam que era só tirar Dilma Rousseff e o Brasil ia melhorar automaticamente.
Bastava questionar isso para ganhar ouvir que "essa daí vai apertar 13 com força na urna" e virar alvo de um ataque em enxame ou da máquina de fake news.
O silêncio eloquente com os exageros e radicalismos de grupos que apoiaram o impeachment tinha um preço: o desengajamento moral.
Enquanto nos empanturramos com esse banquete de consequências, colocamos outro no forno.
O lulismo permite que aliados e militantes se comportem exatamente como os bolsonaristas - uns em ação, outros em ruidosa omissão. Mas não vai descambar, já que são o lado certo da história.
Tem gente acreditando nos dois grupos. Somos senhores e escravos das nossas próprias escolhas. A cada uma descemos mais o sarrafo, mas não mudamos o jeito de pensar. Pensando bem, é impossível ter algum tipo de ficção que consiga superar essa realidade.
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