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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Qual o limite do fetiche da elite urbana por miséria?

Guilherme Boulos no Bloco Baixo Augusta/Rua da Consolação-SP - Francisco Cepeda/AgNews
Guilherme Boulos no Bloco Baixo Augusta/Rua da Consolação-SP Imagem: Francisco Cepeda/AgNews

Colunista do UOL

15/03/2023 16h10

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Em 1980, o carnavalesco Joãosinho Trinta cravou uma frase repetida até hoje: "quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta de luxo". Ontem esse debate ressurgiu nas redes sociais com um vídeo que o deputado paulista Guilherme Boulos, o mais votado do Estado, fez para seus seguidores.

Ele mostra um assentamento do MTST na comunidade Maria da Penha, em Guarulhos. Ali, explica uma casa de taipa à qual dá o nome de bioconstrução e um projeto premiado de cisternas, feitas com caixas d'água comuns que coletam chuva para uso na hora e em banheiros.

É uma estética que ele realmente precisa explicar para o público da elite urbana dedicado a redes sociais. Aquelas imagens não fazem parte do repertório de vida dessas pessoas, são vistas até como novidade ou inovação. Para o pobre, principalmente do interior, a imagem dispensa palavras e vem carregada de sentimentos pelo excesso de familiaridade.

A diferença de visões, como sempre, virou artigo explosivo no ambiente das redes. Muita gente riu da apresentação da caixa d'água-cisterna falada como se novidade fosse. É injusto, no entanto, diante da importância do projeto. Cisternas são soluções utilizadas no mundo todo e muito importantes para várias comunidades, como aquela mostrada. Aliás, é uma tecnologia milenar.

A discussão séria está no início do vídeo, a casa de taipa tradicional, que serve como barracão, com o nome gourmetizado de bioconstrução. Não é um erro em si. Bioconstruções existem, são formas de construir ambientalmente sustentáveis. Muitos especialistas colocam o tipo de construção que ele montou nesse rol.

Para a militância de sofá, que obviamente mora em construções clássicas de alvenaria, é muito importante demonstrar apoio à causa ambiental. Pega bem, parece que a pessoa se despiu dos próprios privilégios para construir um mundo melhor.

Sou favorável a todo e qualquer mecanismo de alívio psicológico, inclusive quando voltado a aplacar a culpa burguesa. O que não se pode é confundir esse fenômeno com ativismo ou soluções efetivas para pessoas de baixa renda.

Casas de taipa são bonitas em fotografias e têm a vantagem de utilizar materiais e mão-de-obra locais, sendo mais sustentáveis que as de alvenaria. O problema são as consequências para os seres humanos que moram nelas.

Há décadas, dezenas de iniciativas tentam acabar com esse tipo de construção porque ela favorece a infecção por doença de Chagas, que gera progressivamente insuficiência cardíaca.

As paredes feitas de barro e cascalho acabam formando buracos, onde acaba se hospedando o inseto barbeiro, vetor do protozoário Trypanosoma cruzi, transmissor da doença. Bruno Filardi, doutor em medicina e pós-doutor em imunopatologia molecular, compartilhou comigo um artigo mostrando a relação direta entre esse tipo de construção e a doença. É uma questão com que as pessoas pobres estão profundamente familiarizadas.

"Já morei em casa de taipa quando era criança. Lembro de ser uma grande alegria nossa quando meu pai construiu uma de alvenaria. Sofríamos com escorpiões, aranhas, barbeiros e até cobras entre as frestas de barro. Hoje, sinto tristeza quando vejo famílias nessas condições", disse Otaciano Sales, enfermeiro formado pela UFRN e atuante na cidade de Quixeré, no Ceará.

Os benefícios ambientais da técnica compensam as consequências infligidas aos moradores dessas casas? Caso esse tipo de construção seja utilizada sistematicamente em barracões, não casas, quais são as consequências efetivas? Essas são as perguntas que fazem diferença para saber se estamos ou não diante de uma solução viável para as pessoas.

A glamurização da estética da miséria serve às elites como consumo de arte. Bares, cafés e casas noturnas que emulam essa estética são hype em grandes centros urbanos, como Rio e São Paulo.

É um fetiche que tem se tornado popular ao ponto de povoar o universo da comédia. O último vídeo do perfil de humor A Vida de Tina é sobre um bar feito dentro de uma marcenaria sem reforma, ilustrando a gentrificação que mantém elementos da pobreza sem manter os pobres.

Qual o limite desse fetiche? Ser tratado como fetiche. Essas ideias não podem se confundir com propostas de políticas públicas.