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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Governo fará 'checagem de fatos' sobre o próprio governo

Maria Petrishina/Getty Images/iStockphoto
Imagem: Maria Petrishina/Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

28/03/2023 18h26Atualizada em 28/03/2023 18h53

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Seria cômico se não fosse trágico. O governo federal acaba de lançar uma plataforma intitulada de "checagem de fatos" ou "fact-checking". É a normalização do absurdo um governo dizer que sua atividade pode ser comparada ou confundida com a de checadores de fatos. Não pode. Quer dizer, em democracias não pode.

Ouvi pessoas dizendo com sinceridade que seria apenas mais uma plataforma como todas as outras. Até me questionaram: se o UOL tem checagem de fatos, por que o governo não pode? Porque é governo, não imprensa. Não se pode confundir o papel da imprensa com o papel do governo, como se faz agora.

Quer dizer, em países como Cuba, Rússia e China, esses papéis são deliberadamente confundidos. Espero que ainda saibamos diferenciar.

Argumentam comigo que a imprensa é tendenciosa, teria lado. É um viés cognitivo comum esse de imaginar a imprensa inimiga dos meus amigos, como se toda ela fosse um bloco monolítico com o mesmo tipo de ideologia. Existem veículos mais e menos ideológicos e mais e menos plurais. A imprensa, formada por seres humanos, parece de todas as falhas humanas. Nada disso é desculpa para que o governo se meta a brincar de ser imprensa e se comparar com jornalistas.

Mais preocupante ainda é que a tal plataforma seja da Secom de Paulo Pimenta, que já mostrou como pretende tratar jornalistas. Estamos diante do "Cercadinho 2, a missão". Confrontado pela jornalista Raquel Landim, o todo-poderoso da Secom disparou: "você é jornalista?".

Claro que não. Minha colega de turma da USP é astronauta e fica na TV fazendo um bico. Paulo Pimenta argumentou então que é jornalista. Ele efetivamente é, tanto quanto a gerente do meu banco. Ambos se formaram em boas universidades mas não atuam no ramo. O chefe da Secom se meteu a ensinar uma jornalista com mais de 20 anos de experiência a profissão dela. Avalie que beleza será esse fact-checking.

Já vi algumas paquitas luloafetivas compartilhando o material. Alegam ser pela democracia. Como expliquei em artigo no ano passado, o brasileiro diz que gosta da democracia, mas não faz ideia do que se trata. Na pesquisa que comentei ano passado, 58% não discordam da afirmação de que é possível intervenção militar por incompetência do governo numa democracia. A mesma cabeça de quem agora acha que governo fazer checagem de fatos é algo democrático.

Parece absurdo que agora o povo pague para o governo fazer a "checagem" e determine o que é ou não verdade entre aquilo que é dito sobre o próprio governo. É uma distorção perigosa, principalmente na era em que política se faz à base de narrativas.

Os luloafetivos que me chamam carinhosamente nas redes de velha, vagabunda e fascista garantem que o PT sempre foi muito democrático com a imprensa. Talvez seja novamente essa resignificação da palavra democracia.

Meu amigo Rodrigo da Silva, fundador do Spotniks, fez uma linha do tempo de ações reais dos políticos petistas. Vejamos se são democráticas:

Em 2004, por não gostar de uma reportagem sobre ele, o presidente Lula ameaçou expulsar do Brasil o correspondente do New York Times, Larry Rother.

Em 2008, o deputado Fernando Ferro criou o termo PIG, "Partido da Imprensa Golpista", popularizado depois por um dos jornalistas amigos do governo. Todo mundo que não elogiasse Lula era do PIG.

Em 2010, Lula deixou claro sobre a eleição de Dilma Rousseff que "nós não vamos derrotar apenas os nosso adversários tucanos, nós vamos derrotar alguns jornais e revistas que se comportam como se fossem um partido político e não têm coragem de dizer que são um partido político, que têm candidato e não têem coragem de dizer que têm candidato, que não são democratas e pensam que são democratas". Disse num comício de campanha em Campinas, lembrando muito um ex-presidente nosso que agora não lembro quem é.

Diversas vezes Lula declarou que faltavam partidos de oposição no Brasil e que a oposição é a imprensa. Agora começa o mesmo processo de antes.

Jornalistas que não bajulam Lula serão propositalmente confundidos com bolsonaristas pela militância virtual. Com medo da virulência e da difamação constabte, muitos sucumbirão à autocensura, moderando toda crítica.

O segredo da hegemonia política e da erosão democrática não é mandar a imprensa se calar, é nem precisar fazer isso.