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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que fazer com as primeiras-damas da era da lacração?

Colunista do UOL

13/04/2023 16h15

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Janja não pode respirar que atrai fúria. É curioso ver o nível de agressividade das reações a qualquer coisa que ela faça, sempre num tom muito mais violento e grave do que as reações ao que fazem integrantes do governo.

No episódio da taxação das compras do exterior (sobre o qual falei ontem nessa coluna aqui), ela tentou explicar por que o governo do marido está implementando a medida criada por Paulo Guedes no governo Bolsonaro. Como a esquerda dizia que era ódio a pobre poucos meses atrás, agora fica difícil - e até ridículo - desfazer o discurso.

Janja foi apedrejada, a imprensa dá conta de que gente dentro do próprio governo se sente incomodada com as falas dela. Eu, que já fui assessora de político, até entendo o posicionamento. No entanto, fica entalada na minha garganta a sensação de que muita gente tem prazer em colocar mulher no seu "devido lugar", o de subalterna.

Ocorre que a posição de primeira-dama evoca esse ar subalterno. Janja é feminista de coração e discurso, mas topou, por questões afetivas, abrir mão dessa prática para viver a vida do homem que ama. É o que fazem todas as primeiras-damas.

Um país de estrutura machista feito o Brasil tende a tratar mulheres como idiotas. É por isso que muita gente não tem nem vergonha de vir com a conversa de primeira-dama ativa ou independente. Isso não existe. Primeira-dama, oficialmente, nem parte do governo é. E ela deixa de ter o título honorífico caso não esteja mais casada com o presidente da República. É o homem que manda, como gostam os homens.

Homens machistas querem que nós, mulheres, fiquemos no nosso "devido lugar". Esse lugar é aquele em que temos o poder derivado do poder deles, um poder que pode ser retirado por eles a qualquer tempo. O poder emana do homem, a gente exerce enquanto ele deixa e tentam nos enganar dizendo que isso é independência.

Primeira-dama era uma expressão norte-americana do século XIX para se referir a mulheres relevantes na sociedade. Esse nome virou algo relativo ao governo em 1857, com a eleição de James Buchanan.
O papel em si já existia e segue sendo o mesmo de hoje, viver para o marido e apoiar, principalmente na área social e cultural o trabalho dele. Era exercido por esposas de mandatários no mundo todo. Mas na primeira vez em que isso se chamou primeira-dama não era uma esposa, era a sobrinha de um presidente solteiro.

Ao aderir à lacração e romper o laço com a realidade objetiva, Janja se coloca numa posição difícil. Ela é uma mulher com formação educacional e competente, que resolveu viver em função do marido por um período. Em outro momento, pode ser que ele faça a mesma coisa, mas não é o que ocorre agora.

Uma primeira-dama poderia, em tese, continuar com seus projetos de vida em vez de parar a vida para ajudar o marido? Em tese sim, na prática é impossível. Tudo o que a mulher de um governante fizer será visto como atrelado a ele e conflito de interesses. Nem se ela trabalhasse apenas no exterior teria sossego. Todo país tem uma oposição e as atividades profissionais ou políticas de uma primeira-dama, caso exercidas de forma independente do marido, seriam um flanco aberto no governo dele.

Nessa era de sinalização de virtude e exacerbação dos fingimentos, começamos a ter vergonha de ser quem somos. Gente que aponta 24 horas por dia os erros dos outros - e confunde isso com militância - acaba entendendo que não pode sair da cartilha um único segundo.

Não importa a cartilha que cada um de nós segue, todos saímos dela vez ou outra. A lacração dá a oportunidade de fingir que não, que somos pessoas perfeitas e só os outros erram, que eu sou uma mulher sempre independente e só as outras são ajudadoras do marido. Na vida de pessoas comuns, a dissonância entre discurso e prática já dá problema. Levar isso para o mundo político ainda trará muito ruído.