Topo

Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A treta do Telegram e nosso amor pela democracia

Ato em defesa da democracia em frente ao Fórum de Justiça Federal na Avenida Paulista em São Paulo (SP), nesta quinta-feira (11) - Marina Uezima/Futura Press/Folhapress
Ato em defesa da democracia em frente ao Fórum de Justiça Federal na Avenida Paulista em São Paulo (SP), nesta quinta-feira (11) Imagem: Marina Uezima/Futura Press/Folhapress

Colunista do UOL

11/05/2023 17h27

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O episódio da tentativa frustrada de regulação das Big Techs é costurado basicamente por duas ideias, democracia e internet. Cada dia fica mais evidente que não entendemos nem de uma coisa nem de outra, projetamos nossas fantasias sobre as duas ideias.

É no mínimo curioso ver um debate ainda aceso sobre soberania e empresas que funcionam na internet. Ele já foi travado e já foi pacificado por duas leis brasileiras tidas como exemplos mundiais, o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, LGPD.

A nossa lei diz que a internet não deve ser tratada como brasileira, mas vista como fenômeno mundial e livre. Internet é a estrutura, algo diferente dos negócios que são construídos a partir dela, as empresas de redes sociais, por exemplo. E essas empresas, por sua vez, são algo diferente do uso que grupos humanos fazem da estrutura delas.

O Telegram não é vítima nessa história, é uma empresa bilionária com interesses bilionários que sabe jogar o jogo da regulação. O embate mais conhecido é com Vladimir Putin, já que o Telegram nasceu na Rússia. O governo russo exigiu dados de usuários que, segundo alegava, haviam cometido crimes. A empresa não cedeu e começou a sofrer pressões do Kremlin. O serviço foi proibido na Rússia e a represália começou.

Qual o desfecho? A empresa e seu dono, Pavel Valeryevich Durov, se mudaram para os Emirados Árabes Unidos. Ele também é dono da maior rede social russa, o Vkontakte. Como, na prática, o serviço era usado, Putin acabou liberando o Telegram de novo.

Estamos diante de uma realidade nova. Leis sempre foram feitas a partir da soberania de cada país, democrático ou não, inclusive para empresas multinacionais. Aplicar essas leis sempre foi possível porque há controle de fronteiras. Resta saber o que fazer quando o produto pode transitar o mundo todo sem passar por esses controles, como é o caso do serviço das Big Techs.

Aplicar os métodos analógicos não tem funcionado e o Telegram aprendeu a jogar esse jogo. Ao ver que o governo ficou num corner em que está refutando pretensões de censura, a empresa publica algo sob medida para dar problema. O que acontece?

Em um dia, é obrigada a remover a mensagem e publicar um texto pronto feito pelas autoridades brasileiras, sob pena de multas altíssimas e até de ser proibida no Brasil. Bela maneira de assegurar ao povo que não existe pretensão de censura.

Infelizmente, também agimos com esse nível de eficiência quando tentamos proteger a democracia. Em outubro passado, fiz uma coluna sobre a pesquisa IPEC que avaliou o que o brasileiro entende como democracia.

Para 71%, "democracia é ter liberdade de expressar seus pensamentos, independentemente de quais forem". Por outro lado, 58% concordam que "democracia é permitir que forças militares intervenham quando o governo for incompetente". Democracia é tratada como um valor moral, não como um regime de governo.

É por isso que tanta gente considera ser necessário tutelar o debate público para garantir a democracia. São livres para pensar assim, mas precisam ser alertados que esse pensamento também infere que democracia é impossível.

Só há duas possibilidades reais. Na primeira, a da democracia, todos têm discernimento para tomar suas decisões e, por isso, todos os votos valem o mesmo. Na segunda, é preciso uma elite superior dizer ao povo o que é ou não verídico, já que ele não tem capacidade de discernimento. Sendo assim, como vai escolher de igual para igual numa eleição entre políticos que mentem sistematicamente?

Talvez só exista uma resposta fácil no debate sobre como preservar as democracias em sociedades mediadas por algoritmos: não tem como criar algo eficiente só jogando para a galera, sem colocar no debate gente que entenda profundamente de democracia e de algoritmos.