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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Grampos de Robinho escancaram a dinâmica social do esculacho de mulher

Robinho em ação com a camisa do Milan - Marco Luzzani/Getty Images
Robinho em ação com a camisa do Milan Imagem: Marco Luzzani/Getty Images

Colunista do UOL

15/06/2023 18h24

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Foi difícil ter paciência e estômago para ouvir os grampos do jogador Robinho, um trabalho primoroso da reportagem do UOL. A gente pensa que sabe muito do caso e que se indignou o suficiente até ouvir esses diálogos divulgados em primeira mão. O comportamento posterior é um crime além do crime.

Eu sinceramente admiro os jornalistas que tiveram saúde mental para ouvir o material completo, escolher os trechos mais importantes para o público, montar um texto coerente e ainda montar um podcast. Só de ouvir o material final o estômago já se revira, são diálogos que nos provocam reações físicas de indignação.

"Eu vi o Rudney rangando ela, e os outros caras rangando ela. Então os caras que rangaram ela vão se foder", disse um dos maiores ídolos do esporte preferido do Brasil sobre um estupro coletivo presenciado por ele.

Rangando ela é a frase. Parece que nem é crime, que estava batendo uma marmita. É uma forma de falar que mostra a desumanização da vítima e a normalização do crime. Pior que isso, mostra a ideia perversa de que você pode assistir um crime e simplesmente não fazer nada a respeito. Até pode, mas vira cúmplice.

Robinho e um amigo, que estavam na Itália na época do processo, foram condenados com trânsito em julgado. Outros quatro amigos escaparam do país e sequer foram julgados. A Justiça italiana, que não é rápida, demorou 10 anos a definir a pena e pedir ao Brasil que determinasse o cumprimento da sentença aqui mesmo.

O processo chegou em fevereiro. Robinho está solto até hoje. A decisão sobre o que acontecerá efetivamente com ele deve ser tomada dia 19 de agosto no Superior Tribunal de Justiça.

O caso envolve uma moça albanesa que estava comemorando seu aniversário de 23 anos no Siro Cafe, em Milão. Ela bebeu muito, ficou inconsciente. Robinho e cinco amigos foram acusados por ela de estupro coletivo, o que deu início ao processo.

Os diálogos comentando o fato são reveladores da normalização do esculacho da mulher pela sociedade brasileira. Estavam na Itália representantes de um dos principais pilares da nossa cultura, o futebol. E alguns estão verdadeiramente indignados porque a vítima de um estupro coletivo que eles presenciaram e não impediram os nomeou. Falam como se não fossem cúmplices porque acham que não são mesmo.

Infelizmente, os casos de estupros envolvendo jogadores de futebol brasileiros não são poucos. As versões dadas para o fato são reveladoras da cultura de objetificação e desumanização da mulher. Só que esse meio não é isolado do país, o futebol não é um grande culpado, é parte de um caldo de cultura.

Homens que ganham dinheiro, notoriedade e poder com o esporte vivem num meio que vê mulheres como troféus e objetos, que devem ser usadas e podem ser esculachadas. Isso jamais seria possível se a sociedade brasileira não partilhasse dessa visão.

Muita gente pode argumentar que não pensa assim e eu realmente acredito. O problema é outro. Entre os que consideram mulheres como seres humanos com direito a dignidade, há muitos que calam diante dos que não consideram.

O que um homem faz com uma mulher só chega a dar problema mesmo para ele no Brasil se for num nível goleiro Bruno de agressividade. Tentar provocar aborto, não conseguir, mandar matar, entregar o bebê dela para um estranho e ainda ter a lenda de que deu os pedaços para os cachorros comerem.

Mesmo com tudo isso ainda há fãs e defensores, o que é normal com criminosos famosos. No entanto, a posição da sociedade diante do goleiro sempre foi da mais absoluta repulsa, com respostas ativas diante de qualquer tentativa de proeminência social.

Se não chegar nesse nível, mesmo que seja um estupro coletivo, não vai ter esse problema. Imagine a consequência de esculachar mulheres no debate público sistematicamente. É nenhuma. Tudo isso se retroalimenta. Tomara que a indignação de agora nos faça aprender que respeito importa e não podemos premiar quem viola a humanidade e a dignidade.