Topo

Maria Carolina Trevisan

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cuca deixa Atlético-MG sem tratar de violência sexual e engasga torcida

Colunista do UOL

04/01/2022 04h00

Cuca foi o técnico mais vitorioso no Brasil em 2021. Sob sua liderança e competência, a equipe do Clube Atlético-MG ganhou os títulos de campeão no Campeonato Mineiro, Brasileiro (depois de 50 anos) e na Copa do Brasil. Era para ser aclamado como herói pelos torcedores do Galo. Mas Cuca termina sua passagem no Atlético-MG, anunciada na semana passada, sem se posicionar claramente contra o caso de violência sexual que o envolve, sombra que o acompanha há 34 anos, desde que foi condenado a 15 meses de prisão por estupro de uma adolescente na Suíça, em 1987, com outros três jogadores do Grêmio.

Essa postura levou a torcida do Galo — reconhecida por sua paixão pelo time, por seu incentivo e respeito aos jogadores até nas derrotas — a um cabo de guerra entre o avanço e o retrocesso em relação aos direitos das mulheres. De um lado, a vontade de saudar a liderança de Cuca dissociando o fato de ter acontecido um crime sexual à pessoa que ajudou o Galo a ser o grande vencedor de 2021. De outro, o grito contido e engasgado de celebração porque não é possível desagregar os acontecimentos de Cuca. Poderia ser diferente se ele tivesse, por exemplo, iniciado uma campanha, assumido o que houve com clareza, se arrependido (finalmente) e se posicionado com mais veemência sobre o passado, o presente e o futuro, relacionando o ambiente masculino do futebol e o respeito às mulheres e meninas.

O fato de o caso ter acontecido em 1987 não diminui a sua gravidade. No contexto daquele tempo, as questões relacionadas à violência contra a mulher ainda eram tratadas com a normalidade de uma sociedade ainda mais machista, racista e desigual, quando o movimento feminista enfrentava a resistência de um país sem democracia e num momento em que não havia entendimento jurídico bem definido sobre esses crimes, como a Lei Maria da Penha.

Os tempos mudaram. Por isso, requerem novas posturas dos homens, outros comportamentos. Cuca poderia ter aproveitado os holofotes, as televisões, as páginas dos jornais para alavancar um marco sobre esse tema no mundo do futebol. Como ele não fez nada disso, acabou por reforçar o lado de quem minimiza esse tipo de ocorrência, mesmo que o tempo tenha passado.

Nem sempre o futebol lida com as questões colocadas na sociedade. A paixão não é racional. Mas poderia ajudar muito, ainda mais no Brasil, que reverencia tanto esse esporte. Demoramos muito para, por exemplo, assumir o racismo do brasileiro e combatê-lo em campo, discutir de maneira contundente. Falta muito para chegarmos a algo razoável, mas avançamos.

Recentemente, o caso Caboclo — presidente da CBF que assediava funcionárias — obrigou a Confederação a assumir um posicionamento mais forte, afastando e suspendendo o seu presidente. Sofreu pressão dos patrocinadores também, é verdade. Esses comportamentos precisam mudar. Não há mais espaço para tolerar o assédio, a violência, ou fingir que deixar uma adolescente sozinha com quatro jogadores, num quarto de hotel e segurá-la enquanto ocorre uma agressão sexual não é grave porque aconteceu faz tempo. Ser conivente, ser cúmplice ou omisso é viabilizar a violência.

Na época, coube ao próprio advogado do Grêmio assumir o que houve. "Um dos jogadores manteve relação sexual completa, outro apenas sexo oral, enquanto um terceiro fez carícias e o quarto foi um 'voyeur' conivente: apenas olhou", declarou Silveira Martins ao jornal Zero Hora do dia 31 de agosto de 1987, como mostrou o Blog do Juca Kfouri.

Ao não assumir a gravidade desse evento, deixando de se posicionar com clareza sobre os acontecimentos e sobre os direitos das mulheres, Cuca pode dificultar uma possível liderança da seleção brasileira na Copa de 2022, posto que pode estar almejando na passagem de bastão de TIte.

Um clube fundado por uma mulher

O Atlético-MG foi fundado em 1908, em Belo Horizonte. Surgiu do desejo de 22 crianças em jogar futebol. Foi na pensão de Dona Alice Neves, mãe de um desses meninos, que o clube nasceu. As mãos de Dona Alice Neves costuraram os primeiros uniformes e as bandeiras do Atlético-MG. Ela também ajudou a formar a primeira torcida organizada de mulheres torcedoras do Galo.

O Atlético-MG tem um histórico de lutas, como mostra o filme recém-lançado "Lutar, lutar, lutar", de Fred Melo Paiva, Helvécio Marins Jr., Lucas Campolina e Sérgio Borges. Há imagens emocionantes de como um de seus principais ícones, o jogador Reinaldo, enfrentou em campo a ditadura militar e levantava o punho cerrado em alusão aos Panteras Negras contra o racismo e a opressão. A torcida o acompanhava, incentivava e tomava para si a mesma luta.

Os tempos mudaram mas a história do Atlético-MG não se apaga. Uma boa parte dela é feita de resistência. Daí o desconforto de algumas alas de torcedores com o próprio clube ao contratar Cuca e respaldar sua posição de silenciar sobre o ocorrido, como se o caso estivesse "superado". Não está, porque não foi tratado. Em declaração à colunista Marília Ruiz, do UOL, Cuca se preocupou em "dar um basta" na discussão, disse que se sente muito incomodado quando a história é resgatada, afirmou não ter culpa de nada e colocou as filhas e a mulher em sua defesa. Nada de reconhecer a gravidade do que ocorreu. É muito ruim.

"Cuca foi condenado, junto a outros atletas do Grêmio, por violência sexual contra pessoa vulnerável, no caso, uma jovem de 13 anos. Trazer Cuca de volta ao Galo, significa ignorar a violência sofrida por mulheres, inclusive torcedoras do Clube, e aflorar gatilhos e sentimentos que gostariam de esquecer ou até mesmo sepultar. Entendemos que, como disse o ex-presidente do clube, é importante reconhecer as transformações em andamento na sociedade e a necessidade de uma postura mais consciente e responsável por parte da diretoria", afirmou o Grupa, coletivo de torcedoras do Galo.

Cuca nunca cumpriu a pena, que prescreveu. Por uma manobra da diplomacia brasileira, foi levado de volta ao Brasil e julgado à revelia, junto com os outros jogadores.

Os tempos mudaram e é por isso mesmo que um tratamento mais transparente desse crime sexual teria de ter acontecido por parte de Cuca e também do Atlético-MG, em respeito às mulheres e à trajetória do próprio clube. Se não se aborda a violência contra mulheres, não se busca uma cura e a ferida fica para sempre aberta, pulsando. Cada um de nós é responsável por enfrentar essa violência em um país em que, ainda, a cada 15 minutos uma menina de 13 anos é estuprada, 53% do total, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Não é caso superado.