Topo

Maria Carolina Trevisan

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Esforço de Braga Netto e Mourão em apagar crueldades da ditadura é violação

O general Braga Netto, que saudou o golpe militar nesta quinta - Marcelo Camargo/Agência Brasil
O general Braga Netto, que saudou o golpe militar nesta quinta Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Colunista do UOL

31/03/2022 13h30

Há 58 anos, no dia 31 de março de 1964, aconteceu o golpe militar no Brasil. O presidente João Goulart foi deposto e teve início a ditadura militar, que durou até 1985. Nesse período, pelo menos 434 pessoas foram mortas ou vítimas de desaparecimentos forçados. Não havia liberdade, havia censura.

Quem desobedecesse o governo militar, quem contasse o que de fato ocorria, quem se organizasse para enfrentar o autoritarismo era preso, torturado, morto ou desaparecia. Cerca de 20 mil pessoas foram torturadas de maneira extremamente cruel sob custódia e a mando do Estado.

Essa é a história desse período.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) considerou que os agentes da ditadura cometeram crimes contra a humanidade. Qualquer tentativa de negar ou reescrever esses acontecimentos é uma nova violação de direitos humanos.

Neste ano eleitoral de 2022, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, saudou a data dizendo que "a Nação salvou a si mesma!". O ministro da Defesa, general da reserva Braga Netto, cotado para ser vice na chapa com Jair Bolsonaro (PL), nesta quinta (31), classificou o golpe militar como "marco histórico" para o "fortalecimento da democracia" em sua ordem do dia (que é lida nos quartéis).

Para Braga Netto, o capítulo mais sombrio da história do Brasil foi "de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz no país, no fortalecimento da democracia, na ascensão do Brasil no concerto das nações e na aprovação da anistia ampla, geral e irrestrita pelo Congresso Nacional". Uma leitura irreal dos fatos.

A verdade é muito mais sangrenta e repugnante e os detalhes constam nos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, com depoimentos dos próprios torturadores e das vítimas.

O que permite que se ignore a realidade do nosso passado é o fato de que não houve responsabilização ou reconhecimento das Forças Armadas do que ocorreu no país, uma das recomendações dos relatórios da comissão. Com isso, não seria possível reforçar o apagamento da memória.

Caso Robson tem arquivos reabertos

O pesquisador Lucas Scaravelli conseguiu a liberação dos arquivos sobre a tortura e a morte do jovem Robson Silveira da Luz, após 43 anos de sua prisão, na 44° delegacia de polícia de Guaianases. A partir desta quinta (31), os arquivos relacionados ao que aconteceu com Robson, que tinha 21 anos, passam a ser acessíveis ao público, à família e à Justiça. Scaravelli faz doutorado na antropologia social da Universidade de São Paulo (USP) e a vida do jovem negro morto pela ditadura é tema de sua tese.

O caso foi julgado em 1988 e resultou no afastamento do delegado Luiz Alberto de Abdalla e na exoneração dos policiais civis José Maximino Reis e José Pereira de Matos. A família de Robson recebeu indenização 18 anos depois de sua morte. À época, sua esposa, Sueli, estava grávida e foi algemada.

A abertura dos arquivos é um marco muito importante para que não se negue as atrocidades da ditadura, como querem os militares do governo Bolsonaro. As circunstâncias que levaram à morte de Robson são paradigmáticas para a democracia brasileira. De acordo com a pesquisa do sociólogo Paulo César Ramos, do Núcleo Afro do Cebrap, o crânio e a caixa torácica do jovem negro estavam comprometidos, seu rim teve de ser retirado, e um dos testículos foi arrancado, em consequência das torturas que sofreu na prisão.

O racismo foi um componente que motivou a prisão e a crueldade dos policiais. A morte de Robson foi um dos impulsionadores da organização que se tornou o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNU), em junho de 1978, com uma ampla agenda de combate ao racismo e de políticas de igualdade racial. Um dos idealizadores do MNU foi o intelectual negro Abdias do Nascimento, importante defensor dos direitos civis e humanos da população negra brasileira e uma referência na história do país.

Hoje, 58 anos depois do golpe militar, vivemos em um país que em vez de condenar graves violações de direitos humanos produzidas pelo Estado, comete violência quando autoridades militares negam a brutalidade da ditadura sob um presidente que venera torturadores.

É dever do Estado fazer a defesa irrestrita dos direitos humanos, da verdade, da memória e da Justiça.