Natália Portinari

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Reportagem

Com valor recorde em 2024, emendas Pix estão no limbo da fiscalização

Uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as emendas Pix contrariou a recomendação da área técnica da Corte e deixou a fiscalização desses recursos em um limbo, apesar de medidas recentes tomadas para aumentar a transparência dos gastos.

As transferências especiais ficaram conhecidas como "emendas Pix" porque o dinheiro vai do caixa da União diretamente para estados e municípios. Ao contrário das emendas parlamentares normais, não é preciso haver uma finalidade específica aprovada para o uso desse dinheiro.

O orçamento dedicado a essas emendas, cujo destino é indicado por parlamentares, aumenta a cada ano. Em todo o governo Bolsonaro, de 2020 até 2022, o gasto total nessa modalidade foi cerca de R$ 6 bilhões. Em 2023, foram R$ 7 bilhões, e em 2024 serão R$ 8,1 bilhões.

Em agosto do ano passado, o ministro Vital do Rêgo foi relator de uma solicitação do Congresso Nacional sobre o assunto. A Corte definiu que, no geral, cabe aos Tribunais de Contas estaduais fiscalizar a regularidade da aplicação dos gastos, detectando problemas nos contratos, por exemplo.

Segundo o entendimento de Vital do Rêgo, porém, o TCU poderia fiscalizar se a Constituição foi cumprida. Isso significa verificar se os recursos foram usados para despesa com pessoal ou encargos sociais (o que é proibido) e se foram usados em programações finalísticas, ou seja, em políticas públicas.

Essa competência "mista" foi desaconselhada pela área técnica, que defendia que a natureza das transferências especiais é de verba federal e que, portanto, caberia à União a competência sobre elas.

O ministro Walton Alencar divergiu também de Vital do Rêgo no julgamento, afirmando que tratam-se de verbas federais e, como tais, deveriam ser totalmente fiscalizadas pelo Tribunal de Contas da União.

"Soam contraditórias as conclusões de que o TCU deve fiscalizar o cumprimento das condicionantes previstas nas transferências especiais, mas não pode fiscalizar sua aplicação. A verificação dos condicionantes passa, obrigatoriamente, pela análise do emprego das verbas", escreveu o ministro, declarando divergir de Vital do Rêgo.

A divergência é sobre um trecho da emenda constitucional que criou as emendas Pix, que define que os recursos "pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira". Para Vital do Rêgo, isso significa que a fiscalização cabe, em primeiro lugar, aos órgãos de controle locais.

No relatório da área técnica, que vai no sentido contrário, auditores destacaram que, durante a elaboração da emenda constitucional, o Congresso discutiu a inclusão de um artigo especificando que a competência de fiscalização seria dos tribunais de contas estaduais e municipais, mas acabou recuando.

"Ao final, o texto foi aprovado pelo plenário do Senado Federal nos termos propostos no Relatório do então senador Antônio Anastasia, sem qualquer menção explícita sobre a competência fiscalizatória", diz o parecer, defendendo que, por isso, a questão foi deixada em aberto pelo legislador.

Por outro lado, os defensores da solução "mista" de Vital do Rego, ouvidos pela reportagem, mas que não quiseram se identificar, acreditam que, dessa forma, o TCU poderá pressionar as Cortes de contas municipais e estaduais a abrirem fiscalizações a partir de agora -- o que ainda não ocorreu, na prática.

Para Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos e ex-secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, a definição de uma competência mista é "inadequada e arriscada".

"Inadequada, porque os recursos, como já escrevi, são da União. Logo, o TCU deve fiscalizar. E arriscada, porque cão com muitos donos acaba mal alimentado, para não dizer que pode acabar morrendo de fome, sabe como é?"

Segundo Salto, no atual modelo de transferências especiais, o TCU teria que "escrutinar cada centavo". "A única solução adequada para esse problema, a meu ver, tecnicamente, seria abolir as transferências especiais. Não tem cabimento que recursos vultosos do Orçamento federal sejam repassados para que os governos locais usem como quiserem e não estejam sujeitos à fiscalização."

Falta de transparência

Sem transparência efetiva sobre como estão sendo aplicados os recursos, mesmo após a decisão de Vital do Rego, que já tem cinco meses, o TCU ainda não abriu nenhuma fiscalização sobre o assunto.

O problema, segundo auditores, é que o TCU não dispõe de dados sobre esses gastos, o que dificulta a abertura dos processos. Como mostrou o jornal O Globo, dos R$ 6 bilhões transferidos durante o governo Bolsonaro, prefeituras e estados prestaram contas ao governo federal sobre o que fizeram com apenas R$ 400 milhões, 6% do total.

Isso significa que o governo federal não sabe o que aconteceu com o resto do dinheiro. Para tentar aperfeiçoar o controle sobre as verbas, o TCU editou em janeiro uma resolução tornando obrigatória a prestação de contas, mas apenas para repasses a partir de 2024.

"Nesse momento, o mais importante é que a base de dados seja atualizada", diz Lucieni Pereira, presidente da AudTCU, entidade que representa os auditores da Corte de Contas. "O trabalho do TCU é muito mais profícuo se for feito de uma forma centralizada, e não no varejo."

A obrigatoriedade da prestação de contas, imposta só agora pelo TCU, tornará possível saber quais municípios gastaram mais dinheiro em finalidades "suspeitas", como terceirização de pessoal, por exemplo. Isso permitirá direcionar esforços para fiscalizar municípios e estados onde houver indícios de irregularidades.

Auditorias da CGU

Em 2022, a Controladoria-Geral da União (CGU) encontrou indícios de superfaturamento e desvios em vários municípios com emendas Pix, e recomendou uma melhoria nas regras de transparência.

Procurada, a CGU disse que a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2024 atende as exigências do órgão para apertar o controle sobre esses gastos.

A LDO exige que quem recebe as emendas comunique ao Tribunal de Contas estadual ou municipal o valor recebido e o plano para sua aplicação, registre no Portal Nacional de Contratações Públicas as contratações realizadas e comprove a utilização dos recursos no Transferegov.br.

Ao UOL, o TCU afirmou que "vai acompanhar o desenvolvimento das funcionalidades necessárias no Transferegov.br". "Além disso, o TCU vai realizar uma ação colaborativa com os Tribunais de Contas Estaduais e dos Municípios para estabelecer mecanismos de fiscalização conjunta". "A Rede Integrar (de planejamento de ações conjuntas entre o sistema de Tribunais de Contas) passa a se reunir a partir de fevereiro", acrescentou.

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