Natália Portinari

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Reportagem

Agricultores deslocados por barragem nos anos 80 hoje estão sem água em PE

No mesmo sistema de irrigação às margens do rio São Francisco, milhares de pequenos produtores rurais estão sem água e outros, do outro lado do rio, abastecidos. Na Bahia, houve emendas parlamentares para bancar os gastos; em Pernambuco, não.

Em 4 de maio, a empresa contratada para abastecer as casas e assentamentos rurais do sistema Itaparica paralisou os serviços por incapacidade de pagamento da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba).

Após quatro dias sem água, as famílias que moram na região conseguiram religar uma parte das bombas através de uma vaquinha, contribuindo com R$ 60 por família, mas a solução é provisória.

Os produtores vivem em lotes pequenos, de até seis hectares por família, afastados da rede urbana de eletricidade e água. O rendimento mensal, segundo associações da região, é de cerca de R$ 800 por núcleo familiar, e o contrato interrompido de água custa R$ 15 milhões por ano. Além disso, a eletricidade fica em R$ 2,5 milhões por mês.

A Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) — que hoje, assim como sua dona, Eletrobras, é uma empresa privada — criou os projetos para compensar pelo deslocamento de populações rurais ao lado da usina de Itaparica, instalada no rio São Francisco em 1988.

A principal cultura da região é a banana, seguida pelo coco e pela goiaba. A terra é produtiva: em 2023, o valor bruto da produção dos projetos nos dois estados foi estimado em R$ 324,9 milhões. São dez projetos de irrigação, seis em Pernambuco e quatro na Bahia.

Em 2014, a Chesf deixou de pagar o convênio com a Codevasf, estatal que atende a região, pelos custos de manutenção do sistema de irrigação. Desde então, a Codevasf arca com energia e água para a região, mas não há previsão no orçamento da União para os gastos.

Isso significa que, a cada ano, os agricultores dependem da decisão de parlamentares de colocar recursos na região, embora a Chesf continue sendo dona da propriedade onde estão assentados.

Sistema Itaparica de fornecimento de água para agricultura familiar, às margens do rio Francisco
Sistema Itaparica de fornecimento de água para agricultura familiar, às margens do rio Francisco Imagem: Codevasf
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A Codevasf procurou a AGU (Advocacia-Geral da União) em 2018 para tentar resolver o impasse com a Chesf. A estatal disse que assumiria os projetos se a Chesf fizesse a regularização fundiária e ambiental dos projetos, o que não ocorreu. A Codevasf diz que a outra empresa descumpriu o acordo.

A Chesf, por outro lado, nega que tenha responsabilidade de manter a operação dos projetos de irrigação.

"Quando a Chesf saiu do circuito (em 2014), a gente começou a sentir na pele o corte de orçamento", diz Rodrigo Lima Filho, diretor do sindicato rural de Santa Maria da Boa Vista (PE), produtor de banana, goiaba e uva no distrito de Fulgêncio.

"O que a gente sonha é que de fato o governo coloque uma rubrica para o sistema de Itaparica. Como agricultores, enxergamos que não queremos tudo gratuito, como era no passado. Queremos dar uma contrapartida. Já entregamos uma proposta para o governo nesse sentido", afirma.

A ausência de regularização fundiária dificulta que haja um rateio formal das contas entre as famílias, ainda que subsidiado, como em outras comunidades de agricultura familiar em que o governo atua.

No fim de 2023, o lado pernambucano do sistema já havia ficado sem água, também por falta de orçamento. O governo acabou conseguindo aprovar um crédito adicional para mitigar o problema, mas os agricultores passaram o período do Natal sem abastecimento em casa.

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Sistema Itaparica de fornecimento de água para agricultura familiar, às margens do rio Francisco
Sistema Itaparica de fornecimento de água para agricultura familiar, às margens do rio Francisco Imagem: Codevasf

Desde fevereiro deste ano, tramita no governo federal um pedido da Codevasf para liberar verba para a região, que ainda não foi atendido. A estatal considera que o projeto é de interesse social.

Após a interrupção do contrato no início de maio, o padre Luciano Lima, de Fulgêncio, procurou autoridades para pedir ajuda, como deputados de Pernambuco. "Como a Bahia tem recursos e Pernambuco não tem? Se até a semana que vem não resolver essa situação, vou pegar a população aqui e ir até a usina de Itaparica. Vamos fechar uma BR, fazer barulho", diz.

Na Bahia, onde há cerca de 20 mil pessoas morando na região dos projetos, foram alocados recursos através de uma emenda de bancada estadual (coletiva, de todos os parlamentares do estado) para 2024, que deve garantir o atendimento da região até o final do ano.

O que diz a Codevasf

Procurada, a Codevasf afirmou que "é sensível às necessidades dos agricultores e das comunidades locais, especialmente por se tratarem de projetos de interesse social. No entanto, por imperativo legal, a empresa não pode manter o contrato com a empresa de operação e manutenção dos projetos sob pena de incorrer em improbidade administrativa."

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"A Companhia tem mantido diálogo permanente com instituições diversas de governo e com membros do Congresso Nacional em busca de soluções orçamentárias para suporte aos projetos de irrigação. As ações da Companhia relacionadas à questão foram comunicadas por ofício ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), às lideranças das bancadas de deputados federais de Pernambuco e ao Governo de Pernambuco, antes da paralisação dos serviços."

A companhia informou ainda que o assentamento tem uma dívida de R$ 21 milhões com a companhia de energia elétrica de Pernambuco, o que agrava ainda mais a necessidade orçamentária.

Procurada, a Eletrobras, dona da Chesf, disse que a responsabilidade pelos projetos é da Codevasf.

"A Companhia reafirma o seu compromisso em seguir contribuindo colaborativamente, nos limites das suas responsabilidades, com estudo de alternativas que visem equacionar as restrições orçamentárias da Codevasf quanto à operação e manutenção dos projetos de irrigação de Itaparica", disse, em nota.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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