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Otávio Rêgo Barros

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A fome não é uma questão de números. É de vergonha na cara.

Pessoa em total miséria (Foto: Reprodução) - Reprodução / Internet
Pessoa em total miséria (Foto: Reprodução) Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

29/08/2022 00h00Atualizada em 30/08/2022 11h56

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Domingo passado (28.08.22) foi realizado o primeiro debate à corrida presidencial por um pool de empresas jornalísticas dentre as quais se encontrava o UOL.

Para a expectativa que se formou foi frustrante.

O espectador não saberá dizer o que pensam os candidatos sobre saúde, educação, economia, segurança pública, defesa etc.

Talvez sobre misoginia, desrespeito à vida e corrupção.

Foi uma enxurrada de ideias lançadas ao vento, estruturadas por marqueteiros regiamente pagos, apenas para atacar adversário e angariar votos indecisos e infiéis.

Soube-se que nos bastidores houve um pugilato entre torcidas. Tigrões contra tigrões, trocando sopapos no vazio à distância segura e separados por seguranças.

Desliguei a televisão com dois sentimentos.

A terceira via chegou tarde à disputa. Que pena, pois há candidatos que se mostraram capazes, equilibrados e corajosos, mas precisarão remar vigorosamente para vencer a correnteza do eu contra tu. Não sei se ainda lhes restará tempo.

Os principais contendores pouco aportaram de coisa positiva ao momento, acreditando que era apenas para cumprir tabela, deixando-se levar por grosserias, amnésias seletivas e provocações.

A irrelevância dada ao tema FOME, que deveria ser discutido com elevada seriedade por quem pensa em governar uma nação com milhões de famélicos, mostra a falta de compreensão para o desafio que se formou nos últimos anos.

Eu vejo sim pessoas pedindo pão na porta de padarias. Na saída de supermercados. Nos sinais de trânsito.

Eu vejo sim pessoas dormindo ao relento, maltrapilhas e desesperançadas.

Eu vejo a FOME nos olhos, no corpo, nas atitudes de tantos brasileiros abaixo da linha da pobreza.

Eu comandei as tropas do Batalhão de Força de Paz no Haiti, logo após o terremoto de 2010, que ceifou mais de 250.000 vidas daquele país.

Lá eu vi uma FOME mais faminta. Em Cité Soleil, uma favela insalubre, onde caminhávamos sobre lixo e fezes humanas, as pessoas comiam biscoitos de barro misturado com banha, moldados com água de esgoto, e secados no chão das ruas estreitas daquela pocilga humana.

Havia uma feira livre que foi alcunhada de Cozinha do Inferno e vocês podem imaginar o porquê. Porcos e cães dividiam as poças de lama com bananas, laranjas, roupas usadas e carne bovina quase em putrefação expostas no chão. Achei que tinha visto o fundo do poço da degradação humana.

Um ano depois, o destino me levou a conviver novamente com a FOME endêmica. Comandei a Força de Pacificação nos complexos de favela do Alemão e da Penha, durante a tentativa do Estado de promover segurança ao ambiente dominado por facções do crime organizado.

Lá havia, e ouso dizer que ainda existe, um valão de lixo, com deságue de água pútrida e fezes humanas, na linha de fundo da Serra da Misericórdia.

Para minha dolorosa surpresa, as pessoas catavam restos de comida, no meio de um aterro sanitário ilegal. Disputavam o lixo com animais abandonados para sobreviver por mais um dia.

"O Haiti é aqui", repetiam os soldados mais experientes que tinham tido a oportunidade de trabalhar em Porto Príncipe.

Não havia deboche em suas falas. Era um ato de perplexidade diante da constatação dolorosa que a FOME, localizada no subterrâneo da degradação humana, estava entre nós também.

Já se foram mais de dez anos e parece que pouco mudou.

É angustiante ouvir candidatos justificarem suas incompetências gerenciais afirmando, sem ruborizar, que não temos FOME em nosso país. Onde eles vivem?

Eles não conhecem uma Cozinha do Inferno ou um Valão da Misericórdia. Não leram sobre a fome de Fabiano, Sinhá Vitória, Menino mais velho, Menino mais novo e da cadela Baleia, personagens da obra de Graciliano Ramos, Vidas Secas, retrato de uma realidade incontestável.

Eles não andam nas ruas das grandes cidades. E quando cumprimentam um homem ou mulher do povo mais humilde, o cenário da novela foi todo ajustado. Vale uma postagem no Twitter.

Se desejarmos sair do fundo deste Inferno de Dante, o foco sobre esse tema deve ser buscado insistentemente. Não apenas agora em plena campanha eleitoral.

O esforço conjunto da sociedade tem soma maior que o trabalho solitário de cada um de nós. A fome não é uma questão de números. É de vergonha na cara.

Paz e bem!