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Um relatório vazado apontou que o Peabody Museum, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, guarda vestígios humanos de mais de 7 mil indígenas americanos e de pelo menos 15 pessoas escravizadas nos Estados Unidos. Além destes, há restos mortais de quatro africanos escravizados no Caribe e no Brasil. Entre estes últimos vestígios, encontra-se o crânio de um homem de origem nagô que teria participado da Revolta dos Malês, em 1835, na Bahia, a maior e mais séria revolta urbana de escravizados nas Américas.
A forma como uma das mais prestigiosas universidades do mundo lidou com corpos de não brancos mostra como a ciência do século 19 explorou negros e indígenas à base de muito preconceito. E, pasmem, essa conduta permanece até hoje.
Este documento faz parte de um conjunto de ações promovidas pelas universidades Ivy League (as universidades de elite norte-americanas:Harvard, Princeton, Yale, Brown, Dartmouth, Pennsylvania, Columbia e Cornell) para identificar como elas se beneficiaram da escravidão. Harvard, por exemplo, prometeu investir US$ 100 milhões em pesquisa para identificar e apoiar os descendentes de escravizados que trabalharam no campus da instituição.
O crânio do nagô baiano chegou aos Estados Unidos através de Gideon T. Snow, cônsul norte-americano em Pernambuco, que o enviou a J. C. Howard, membro da Boston Society of Natural History (Sociedade de Boston de História Natural). Em 1841, o crânio já fazia parte da coleção da Boston Society for Medical Improvement (Sociedade de Boston para Melhorias Médicas).
Assim aparece a descrição do crânio no catálogo da instituição: "um africano genuíno, da tribo Nagô, estimada sobre todas outras tribos por sua estatura alta, largura dos ombros, simetria e força dos membros, unido a uma inteligência não usualmente encontrada entre os negros de outras tribos. Esta foi a tribo que se revoltou em janeiro passado (1835) e este foi um dos chefes do episódio". O catálogo da Boston Society apresenta ainda descrições físicas do homem nagô, que, por respeito ao africano, decidi não reproduzir neste texto.
O nagô na Revolta dos Malês
O episódio de 1835, mencionado no catálogo, foi a Revolta dos Malês, uma insurreição protagonizada por escravizados e libertos africanos de origem iorubá, da atual Nigéria. Na Bahia, homens e mulheres desse grupo ficaram conhecidos como nagôs. A rebelião teve a liderança dos nagôs adeptos do Islã, chamados malês.
O movimento começou na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835 e pretendia romper com a dominação branca, que se beneficiava da escravidão negra, criando uma Bahia para os africanos. As batalhas aconteceram em vários pontos da cidade de Salvador. Partindo da Ladeira da Praça (no atual Centro Histórico), os combatentes percorreram a cidade até o conflito final, em Água de Meninos, na Cidade Baixa (próximo da conhecida Feira de São Joaquim), quando os revoltosos foram finalmente derrotados.
Esse movimento provocou pânico entre as autoridades locais e a população branca. Medidas foram tomadas para reprimir e perseguir os africanos, principalmente os nagôs e os muçulmanos (havia um outro grupo de muçulmanos na Bahia, os haussás): aumento de impostos, envio de cativos africanos para outras províncias do Império, como o Rio de Janeiro, e mesmo a deportação para a costa africana, a segunda migração forçada após o tráfico negreiro.
Vale dizer que os africanos no Brasil viviam uma situação excepcional. A Constituição de 1824 lhes havia negado cidadania brasileira, mesmo àqueles que lutaram durante os conflitos pela independência do Brasil. Nesse sentido, eram apátridas: não eram cidadãos brasileiros e suas nações no continente africano não eram reconhecidas pela diplomacia do Império do Brasil.
Há algumas pontas soltas nessa história do nagô em Harvard. O catálogo informa que ele faleceu em decorrência de um ferimento provocado por uma forte coronhada de uma arma. Chegou a ser recolhido para um hospital, mas não sobreviveu. A documentação sobre o episódio, estudada no livro "Rebelião escrava no Brasil", de João José Reis, indica que o conflito envolveu cerca de 600 pessoas e deixou mais de 70 mortos entre os combatentes africanos. Muitos destes morreram em decorrência de ferimentos provocados por tiros, nenhum por coronhada, nenhum reconhecidamente líder no conflito. É possível que o nagô tivesse participado ativamente durante as batalhas, o que lhe rendeu o título de "um dos chefes do evento".
Harvard e suas controvérsias racistas
Não é a primeira vez que Harvard se envolve nesse tipo de controvérsia. Em 2019, Tamara Lanier abriu um processo exigindo de Harvard a devolução das fotos de Renty Taylor, seu antepassado africano. Ele havia sido retirado do Congo e enviado para as plantações de algodão nos Estados Unidos. Acabou fotografado por Louis Agassiz, um cientista suíço que lá se radicou na metade do século 19 e foi professor de Harvard.
Agassiz era defensor do poligenismo, a ideia de que a população negra não compartilhava origens com outros grupos e era, portanto, inferior. Foi em viagem pela Carolina do Sul, área escravista do país, que Agassiz fotografou Renty e sua filha, Delia, além de outros homens e mulheres escravizados, realizando medições das partes do corpo, inclusive de suas partes íntimas.
Louis Agassiz também andou fotografando a população africana do Rio de Janeiro e a população indígena em Manaus (a maioria despidos) com o mesmo objetivo: provar a degeneração da mestiçagem e a inferioridade dos africanos. As fotografias estão no Peabody Museum - o mesmo que guarda o crânio do nagô baiano.
Em relação às imagens de Renty Taylor, 43 descendentes de Louis Agassiz escreveram uma carta pedindo que Harvard entregasse as fotografias a Lanier. A universidade se manifestou na justiça questionando o parentesco entre Renty e Tamara Lanier. Ainda invocou a Primeira Emenda da Constituição norte-americana, afirmando que a propriedade das fotografias pertenceria ao fotógrafo, e não ao fotografado (ou seus descendentes). Uma decisão da justiça concordou com os argumentos e negou a Tamara qualquer direito pelas fotos, mas a corte de Massachusetts permitiu que ela processasse Harvard pelo "estresse emocional" provocado pelas negativas aos pedidos de informação. Quanto às outras fotografias de Agassiz ainda paira o silêncio.
Corpos negros em exposição
A prática de exibição e exploração de corpos negros, vivos ou mortos, começa com a medição das diferenças entre os agrupamentos humanos, já no final do século 18. Daí para a associação entre tamanho do crânio, origem e superioridade intelectual foi rápido. Ao contrário do que possa parecer, as doutrinas eugenistas, em voga no Brasil no final do século 19, e a busca pela identificação de características morais a partir do exame de características físicas tem uma longa tradição.
Recentemente, o livro "Medical Bondage: Race, Gender, and the Origins of American Gynecology" ("Cativeiro Médico: raça, gênero e as origens da ginecologia americana", ainda sem tradução para o português), da historiadora Deirdre Cooper Owens, mostrou como a violação do corpo de mulheres negras no desenvolvimento da ginecologia nos Estados Unidos criou e disseminou ideias a respeito da suposta tolerância das mulheres negras escravizadas à dor, ao contrário das senhoras brancas.
Pessoas de diferentes grupos étnicos foram exibidas em exposições pela Europa e Estados Unidos durante todo o século 19. As exposições universais, das últimas décadas do século 19, eram uma ode ao colonialismo e ao imperialismo. Pessoas de comunidades africanas, da Ásia e da Oceania eram exibidas em espaços públicos, verdadeiros zoológicos humanos. O congolês Ota Benga, por exemplo, virou atração por sua baixa estatura e seus dentes limados. Foi apresentado em um zoológico na mesma jaula de macacos como "elo perdido" entre seres humanos e primatas.
O caso mais conhecido talvez seja de Sarah Baartman, chamada à época de "Vênus hotentote". Natural da África do Sul, ela foi levada em 1810 para a Inglaterra, onde foi apresentada como um "exemplar" de um show bizarro e racista. Foi exibida em pequenos palcos, numa gaiola e em festas privadas na Europa, principalmente em Paris.
Os cientistas da época também estavam obcecados em estudar seus órgãos genitais. Como Sarah se recusou em vida a permitir tal aviltamento, um cientista francês adquiriu o "direito" de estudar o seu corpo após a sua morte. Partes dele permaneceram em exibição no Museu do Homem, em Paris, até 1974. Após longa negociação, iniciada em 1994, e que contou com a intervenção de Nelson Mandela, os restos mortais de Sarah Baartman foram repatriados e sepultados na África do Sul em 2002. Ota Benga foi deixado em paz após a sua morte, em 1916, mas seus restos mortais permanecem na Virgínia, onde passou os últimos anos de sua vida.
Repatriar para onde, eis a questão
Caso seja repatriado, o crânio do nagô em Harvard envolve um complicado cálculo a ser feito. A universidade ainda está conduzindo testes de DNA para confirmar a sua origem, mas caso ele seja africano, o destino mais óbvio seria a Nigéria, de onde foi retirado e transportado à força para o Brasil. Lá receberia um enterro apropriado, coisa aliás negada aos revoltosos de 1835, enterrados que foram em valas comuns, sem preparo e sem os ritos funerários, fossem eles muçulmanos, católicos ou seguidores da religião dos orixás.
Esse personagem também é de importância no Brasil. Tendo participado da mais conhecida revolta brasileira, o nagô receberia por aqui, além de enterro digno, as honras devidas por sua luta na batalha de 1835. Sendo ele muçulmano, seus restos mortais receberiam os ritos fúnebres devidos. Mas a julgar pela resposta de Harvard ao pedido de devolução das fotografias de Renty, não há muita esperança de que a universidade devolva o crânio, seja para a Nigéria, seja para o Brasil.
É impossível não escrever sobre essa história e não lembrar da exposição pública de corpos negros em programas sensacionalistas que reproduzem estereótipos sobre a população negra e promovem a perpetuação e a naturalização do racismo. De certo modo, o século 19 não está tão longe.
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